Em artigo anterior, já sublinhei que ser médico é uma profissão com direitos e deveres, pelo que quem escolhe sê-lo tem, obviamente, legítimas aspirações de ser bem remunerado. Um médico lida com uma necessidade básica consagrada nos direitos humanos elementares, a saúde, assim como outras profissões lidam com outras (um professor com a educação ou um engenheiro com a habitação). Porém, no caso dos médicos, sociedades iletradas, mesquinhas e desdenhosas tendem, geralmente, a vilipendiá-los por terem rendimentos acima da média! Nos países verdadeiramente evoluídos aceita-se tranquilamente que estes profissionais sejam devidamente remunerados e que as horas extraordinárias, desde a primeira hora (em qualquer profissão, aliás), sejam devidamente pagas para compensar o profissional que abdica da sua vida pessoal para trabalhar. Na pandemia, numa situação de aperto, os médicos, e os profissionais de saúde em geral, foram apelidados demagogicamente de heróis. Passada a aflição, rapidamente voltamos à mesquinhez e ao desdenho que tristemente nos caracteriza.

Dito isto, perante o nivelamento salarial por baixo a que se assiste, empurrando gerações qualificadas para o estrangeiro, e as consequências assustadoras do inverno demográfico em curso (que fazem de Portugal um país ligado às máquinas), descreverei de seguida uma gota no oceano da ineficiente gestão que grassa na nação, condenando-a a ser eternamente vulnerável, pobre e pedinte.

O Aviso no 10047/2017 de 31 de agosto, publicado em Diário da República, deu abertura a Concurso para Grau de Consultor no âmbito das carreiras médicas. A dezoito de outubro de 2021 (!) eu e outros colegas realizamos o respetivo exame, tendo sido dados como aptos. Contudo, até ao momento, ainda não foi atualizada a nossa categoria e a correspondente posição remuneratória. Segundo informação que recolhi telefonicamente junto da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), aguardam autorização do Ministério das Finanças, esgotado que foi o orçamento previsto para esse concurso.

Entretanto, em face do ocorrido com as urgências de obstetrícia no passado verão, a tutela publicou, de forma puramente reativa, o Decreto-Lei n.º 50-A/2022, possibilitando, entre outros, a celebração de contratos de trabalho sem termo com médicos especialistas por parte dos estabelecimentos de saúde integrados no Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou a majoração do valor hora do trabalho suplementar a partir da 51.ª hora. Porém, para além desta medida avulsa, não se conhece qualquer plano estrutural de médio-longo prazo de reorganização dos serviços de saúde em geral que se centre na alocação adequada e eficiente dos limitados recursos (humanos, infraestruturais e financeiros), concentrando, por exemplo, urgências em modelos metropolitanos (como os que existem no Porto na área da Psiquiatria e da Pediatria) ou promovendo a valorização adequada das carreiras médicas (mitigando a debandada de profissionais para fora do SNS). Nunca é demais lembrar que, apesar da mensagem habitual de desresponsabilização, o primeiro-ministro que se tem deparado com estes problemas está em funções desde 2015!

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Num país de proximidade, com uma acessibilidade privilegiada, que mede pouco mais de 200 quilómetros de este a oeste, conectado por uma rede de autoestradas que é a segunda maior da Europa por habitante, é incompreensível que, por regra, sempre que possível e numa lógica sistémica, não se planeie adequadamente a edificação de serviços de saúde (hospitalares e comunitários) que agreguem localidades próximas ou que não se aproveite as capacidades instaladas para, por exemplo, estabelecer urgências conjuntas (diminuindo drasticamente o número de profissionais de saúde necessários para urgências independentes). Assim ocorreria uma eficiente gestão dos recursos da saúde sem colocar em causa a quantidade e a qualidade das múltiplas atividades assistenciais e formativas a cargo dos médicos. Certamente que todos gostávamos que Portugal tivesse recursos ilimitados, não tivesse uma dívida financeira descomunal, fosse pujante e resiliente às demais e cíclicas crises internacionais e, consequentemente, pudesse ter, por assim dizer, um médico “à porta de casa” de cada cidadão e localidade. Mas, infelizmente, essa não é a realidade, pelo que é imperioso gerir criteriosamente e de forma sistémica os parcos recursos existentes.

Em suma, o mesmo executivo que alega não ter orçamento para efetivar a respetiva atualização na carreira de alguns profissionais que concluíram com aptidão o exame do Concurso para Grau de Consultor de 2017, emite um decreto lei a dar liberdade para contratar os profissionais médicos que forem precisos para estabilizar o funcionamento de todos os serviços de urgência! Plano estrutural de médio-longo prazo para o SNS? Nenhum, pelo menos para já… Num país que aceita passivamente o incumprimento de promessas como a dos médicos de família (Costa promete médico de família para todos os portugueses em 2017) ou a “brincadeira” da TAP (Junho de 2020: TAP vai ser nacionalizada; Setembro de 2022: Governo acelera privatização da TAP e quer concluí-la em 2023; Setembro de 2022: António Costa admite venda da TAP com prejuízo) não podemos, infelizmente, dizer que seja de estranhar esta ausência de planificação, rigor, exigência, responsabilização e transparência.

A questão aqui abordada é um pequeno e singelo exemplo de como Portugal é gerido. Continua-se a colocar desejos pessoais, partidários ou corporativos à frente da realidade, gerindo o dinheiro público de forma arbitrária e ineficiente, sem pensar no médio-longo prazo e sem uma visão sistémica do país. A este propósito, cito Sérgio Sousa Pinto que, numa conversa na CNN Portugal com Maria Lurdes Rodrigues, disse: “Então e se não há dinheiro suficiente para o SNS? Para o SNS? Há todo o dinheiro que for preciso! Quer dizer, isto é alguma discussão? Isto é uma feira de leilões, um leilão de maluquices. Quando deixarmos o território da poesia…vamos ter que, entre aqueles que verdadeiramente querem negociar um país atrasado e pobre, cheio de problemas, tomar as decisões difíceis.”

Quando o esteio do pensamento político deveria ser sóbrio, sério e centrar-se na gestão eficiente dos recursos limitados que, enquanto país pobre, temos, continua-se, em geral, a viver numa espécie de Twilight Zone, negando a realidade e comprometendo o bem-estar das gerações presentes e futuras.