O relatório apresentado recentemente por Mario Draghi é uma análise exaustiva ao tema da competitividade da Europa. No entanto, o documento não deve ser analisado apenas como sendo um diagnóstico certeiro e oportuno sobre o estado da União Europeia (UE) em termos de inovação, produtividade e crescimento, tem de ser visto como um alerta máximo sobre a sustentabilidade do investimento, que é a única via para garantir bem-estar a 450 milhões de pessoas a médio e a longo prazo.

Em Portugal, o debate sobre o relatório Draghi acabou por cingir-se à necessidade — real e inadiável — de reforçar os níveis de investimento na UE em 800 mil milhões de euros por ano para que esta não perca de vez o comboio da competitividade face aos EUA e à China e, evidentemente, aos possíveis mecanismos para financiar um investimento dessa magnitude.

Todavia, devidamente esmiuçadas, as 369 páginas (divididas em duas partes) assinadas por Draghi são um alerta máximo. A Europa está perante um “desafio existencial”, como descreveu o ex-presidente do Banco Central Europeu, que não será resolvido com os dogmas de sempre e preconceitos infundados em relação a setores nevrálgicos para o nosso futuro, como o das comunicações eletrónicas.

Sendo certo que os portugueses sabem que podem contar com as operadoras de comunicações eletrónicas, que só nos últimos sete anos investiram 10 mil milhões de euros para assegurarem maior cobertura e qualidade das redes fixas e móveis do país, talvez não tenham presente que a sustentabilidade económica do setor que os liga ao mundo pode estar comprometida.

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Não obstante uma retórica negativa prevalecente, os factos, tal como o algodão, não enganam. Todos os estudos demonstram que Portugal é líder europeu no que refere à cobertura e qualidade das redes fixas e móveis. Vejamos:

  • Os 308 concelhos do país têm, pelo menos, uma estação de base com tecnologia 5G, de acordo com a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM);
  • 98,1% da população dispõe de rede 5G, superando amplamente a média da UE, que está nos 89%, segundo o 5G Observatory Report;
  • 94,6% dos lares estão cobertos por redes de alta velocidade, sendo que mais de seis milhões de casas estão cabladas com fibra, como também mostrou a ANACOM;
  • As redes nacionais, nomeadamente a 5G, têm merecido múltiplas distinções. Entre outras, as da MedUX para melhor cobertura, velocidade mais consistente e melhor performance e da OpenSignal para rede móvel mais rápida da Europa.

Esta qualidade ficou comprovada pelos cidadãos e pelas empresas no exigente contexto da pandemia, altura em que as redes de comunicações nacionais foram cruciais para assegurar que ninguém fosse deixado para trás. E, nas últimas semanas, voltaram a passar o exame com distinção aquando dos fogos florestais que assolaram o país.

Apesar de estarmos na liderança da Europa no que à qualidade e resiliência das redes diz respeito, as nuvens no horizonte são cada vez mais escuras. Ainda que o tráfego sobre as redes de telecomunicações tenha crescido mais de 100% na última década e o número de serviços subscritos tenha aumentado 29%, as receitas retalhistas diminuíram 20% e os preços médios por serviço caíram 38%.

Recuemos um pouco para que a discussão seja feita nos termos corretos: em 2009, ainda com tecnologia 3G, uma oferta de telemóvel com 400 minutos de voz/SMS e 0,5 Gb de dados custava cerca de 60 euros. Atualmente, já com 5G, uma oferta de 3500 minutos de voz/SMS, 100Gb de dados custa 20 euros. Em suma, consome-se muito mais e paga-se bastante menos.

Mais: o esforço de investimento do setor das comunicações eletrónicas em Portugal é superior ao da média da UE. Segundo um relatório do New Street Research, publicado no 4.º trimestre de 2023, o rácio despesas de capital/receitas é de 21,2% em Portugal, acima dos 20,2% de média de 15 países europeus analisados. E a rentabilidade do investimento realizado pelas operadoras situa-se abaixo da média desses países (7,1% em Portugal vs. 7,7% da média dos nossos parceiros).

A todos estes dados acrescem ainda duas realidades. Uma referente aos custos regulatórios, sobretudo com a ANACOM, que têm aumentado incessantemente. É difícil de conceber que a taxa de atividade entregue ao regulador setorial tenha aumentado 60% nos últimos cinco anos (mais de 20% só no último ano). Em 2023, o setor pagou mais de 123 milhões de euros de taxas regulatórias à ANACOM, ao Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) e à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), o que representa um aumento superior a 70% face ao montante de 2010.

Por sua vez, as taxas de utilização de espectro radioelétrico continuam a constituir uma gigante sobrecarga financeira. De 2020 para 2023 subiram 24%, atingindo mais de 71 milhões de euros. Igualmente preocupante é que custos dessa dimensão se devam à intensificação da utilização do espectro MW (micro-ondas) para levar a rede móvel até zonas remotas, incluindo para cumprimento das obrigações de cobertura 5G, e à atribuição de espectro móvel no leilão 5G.

A segunda refere-se à transformação do próprio mercado que a regulação não tem acompanhado. Hoje, os operadores de redes de comunicações eletrónicas não se limitam a concorrer entre si, competem igualmente com gigantes tecnológicos e do entretenimento.

Esta concorrência reflete-se, em primeira ordem, nos serviços, que são em muitos casos substitutos e não estão sujeitos às mesmas regras de funcionamento (aspeto que Draghi também identifica como sendo de corrigir, ao abrigo do princípio de que “para igual serviço, as mesmas regras”).

Além disso, a proliferação de serviços de streaming, que geram quantidades enormes de tráfego de dados, reflete-se diretamente nos custos, com o reforço contínuo das redes de comunicações eletrónicas, que os respetivos operadores suportam integralmente, sem qualquer contribuição por parte das grandes plataformas. Este “almoço grátis”, segundo Draghi, não pode continuar a ser suportado pelos operadores de redes de comunicações eletrónicas.

Neste contexto, resulta evidente a importância de garantir a previsibilidade dos investimentos, onde se insere a preocupação de Draghi com a duplicação dos prazos das licenças de utilização de espectro para salvaguardar o investimento dos operadores. É, portanto, à luz de tudo isto, incompreensível que a ANACOM tenha lançado uma consulta ao mercado onde coloca a hipótese de não renovação ou de renovação parcial das licenças atuais, parecendo querer ir justamente no sentido oposto.

Na semana passada, Roberto Viola, que encabeça a Direção-Geral para as Redes de Comunicação, Conteúdos e Tecnologias (DG CONNECT) da Comissão Europeia, reconheceu que o modelo de regulação da Europa estava ultrapassado e defendeu um quadro regulatório mais consistente, na esteira do que Draghi propõe: uma verdadeira reforma da regulação e a harmonização da legislação (sobre concorrência e proteção dos consumidores, por exemplo) entre os 27 estados-membros.

O roteiro para o médio e longo prazos está feito: menos burocracia, menos “quintais” regulatórios, maior homogeneização das leis no setor das comunicações, e investimento contínuo em infraestrutura, construindo assim um verdadeiro mercado único digital. Por mais impopular que seja hoje, Draghi não hesita: o setor das comunicações eletrónicas precisa de escala – e escala exige consolidação – para ser rentável.

“A diminuição da rentabilidade do setor de telecomunicações pode representar um risco para as empresas industriais na Europa, numa fase em que é necessária infraestrutura de ponta para digitalizar as cadeias de produção, fornecimento e distribuição”, escreveu o homem que já salvou uma vez a Europa de si mesma. Draghi sabe do que fala: menos rentabilidade significa menos investimento. Com menos investimento, Portugal e a Europa ficarão definitivamente para trás. Está criada a oportunidade para agirmos e corrigirmos o rumo – e o alerta para o que sucederá se a desperdiçarmos está feito.