A reflexão sobre o rendimento básico incondicional (RBI) tem recebido contributos das esferas filosófica, económica e política, e todas elas parecem subentender que o Estado Português se encontra em falta. Porém, a reflexão é também de ciência jurídica. E vendo as coisas por esse prisma, é importante dizer que o RBI não tem qualquer base de sustentação jurídico-constitucional.
É certo que o estudo da história recente da despesa pública – que é no fundo a história do Estado Social – mostra que o desenvolvimento da intervenção do Estado se fez em nome do princípio da igualdade. Mas não de uma igualdade qualquer.
Até ao final do século XX a ideia de assegurar a todos uma prestação pública indiferenciada nunca passou da literatura utópica (Platão, More, Campanella…). Desde o século XVIII que a intervenção pública, que foi crescentemente reclamada pelos cidadãos e depois constitucionalizada, diz respeito à resolução dos problemas dos mais pobres e ao desenvolvimento de funções sociais que possam contribuir para a atenuação das diferenças mais significativas (entre os muito ricos e os muito pobres) verificadas entre os membros de uma sociedade. Mesmo hoje, o estudo da Constituição em matéria de despesa pública mostra que as prioridades do Estado continuam ligadas a esta ideia de igualdade vertical – e não de uma igualdade horizontal.
Em 1976, no momento constituinte, a influência marxista ditou que a igualdade fosse promovida exclusivamente a favor dos trabalhadores. A posterior desideologização marxista da Constituição e o acolhimento de uma economia aberta de mercado assente na iniciativa privada, promovida pelas revisões constitucionais dos anos 80 e 90, fez ressaltar um paradigma de despesa pública amigo dos mais desfavorecidos, conquanto assente num sistema de justiça social que permita o acesso universal à educação, à saúde e à segurança social.
Para que se perceba o esquema distributivo estabelecido pela Lei Fundamental, lançaremos mão de um conceito simétrico a um outro muito invocado quando se fala de justiça fiscal, o de capacidade contributiva (até porque a receita e a despesa são os dois braços de intervenção do Estado). Falaremos, então, de necessidade receptiva. E tal como na justiça fiscal, usaremos o conceito de necessidade receptiva para procurar explicar a medida do limite do arbítrio do legislador.
Pois bem, tal como a cobrança de impostos não é arbitrária, tomando tendencialmente como base funcional a capacidade contributiva dos cidadãos, também a despesa pública não é arbitrária. Ela deve tomar prioritariamente como fundamento uma certa ideia de necessidade receptiva, assente numa concepção constitucionalmente assumida de solidariedade.
A igualdade constitucionalmente promovida através da despesa pública contém, portanto, uma ideia de progressividade implícita, enxertada na ideia de acesso universal à educação, à saúde e à segurança social. O Estado tem a obrigação constitucional de que a ninguém seja vedado o acesso a estas prestações, e para isso tem o dever de prestar mais a quem tem pouco ou nenhum rendimento disponível, podendo prestar menos a quem menos precisa. Se pensarmos nas prestações – e também nas isenções de pagamento – que o Estado faz em matéria de saúde ou de ensino superior podemos ficar com uma boa ideia de como está desenhado o sistema: acesso universal conjugado com isenções e apoios previstos para os que mais precisam.
No que toca às prestações dirigidas a quem tem menos recursos, o Estado fica inibido de invocar a chamada reserva do financeiramente possível, na medida em que tem o dever constitucional de promover para todos uma vida minimamente condigna e o acesso aos bens reputados essenciais. Asseguradas estas prioridades, cresce naturalmente o espaço da reserva do financeiramente possível, permitindo-se que em períodos de falta de liquidez o Estado se retraia nas prestações dirigidas a quem menos precisa. Esta é, no fundo, uma consequência da escassez de recursos, que obriga a uma certa contenção e ao estabelecimento claro de prioridades para que não haja desperdício.
A esta luz, o pagamento de um RBI implicaria uma revisão constitucional muito profunda. Para usar a hipótese colocada por Luís Aguiar-Conraria, se o RBI corresponder a um pagamento de 400 euros mensais a 9 milhões de pessoas, com um gasto de 43 mil milhões de euros, poderemos ficar com uma boa ideia da revolução que o Estado Social teria de sofrer. Com efeito, 43 mil milhões de euros é exactamente o montante total previsto no Orçamento do Estado de 2018 para cobrir todas as despesas da Segurança Social.
Mesmo sem mexer nas demais funções do Estado, isto equivaleria a substituir uma enorme fatia de despesa pública por uma prestação universal e indiferenciada de bens. Essa substituição redundaria inevitavelmente numa impossibilidade para o Estado de indagar pela pessoa que está por detrás da despesa com os apoios sociais, nomeadamente das condições em que ela se encontra.
Ora, isto não se enquadra minimamente no modelo de Estado social que escolhemos para nós, assente na ideia de que ninguém deve ser deixado para trás. À luz da Constituição, é tão indefensável a submissão de todos os cidadãos a um montante fixo de imposto sobre o rendimento, quanto conceber-se um sistema de protecção social assente numa prestação indiferenciada de bens por parte do Estado – é uma colisão frontal com o princípio da igualdade, na concepção contemporânea que é acolhida na Constituição.
Acresce que, no nosso país, 400 euros dificilmente resolveriam os problemas hoje identificados como problemas de igualdade e que têm sobretudo a ver com a inclusão social (de que são bons exemplos a valorização social do trabalho das mulheres e a inclusão social dos portadores de deficiência…). Além de que ainda está por provar que esta quantia seria suficiente para resolver os problemas, que realmente podem ser resolvidos com dinheiro, de quem tem poucos ou nenhuns rendimentos. Note-se que essa prestação ficaria abaixo do valor do salário mínimo.
E se hipoteticamente esses 400 euros passassem a 1000 euros (nem ponho a hipótese dos 2300 euros, sujeitos a referendo na Suíça), a assunção do pagamento de um RBI não deixaria de colocar outras questões relevantes: faria sentido continuar a ter uma política tão generosa de prestação de cuidados de saúde? E um sistema generalizado de reformas e de pensões de velhice, continuaria a ser possível de financiar? E o acesso totalmente gratuito (e em muitos casos apoiado) à escolaridade obrigatória continuaria a ser viável? De facto, seria difícil exigir que, com um gasto redistributivo tão elevado, o Estado continuasse a suportar despesas sociais nos montantes agora dispendidos. O que poria inevitavelmente em causa o acesso universal aos bens actualmente considerados essenciais.
Assim sendo qualquer uma das hipóteses de RBI que conseguimos conceber acaba por nos colocar perante uma reconfiguração radical do Estado social. Numa hipótese menos generosa, o sistema passaria a assentar numa redistribuição totalmente cega baseada numa concepção horizontal de igualdade, tolhendo a intervenção do Estado no sentido de acorrer com prioridade aos que mais precisam. No caso de o RBI ser mais generoso, atentaria inevitavelmente contra os pilares em que constitucionalmente assenta o Estado Social, pondo em causa não só a ideia de igualdade desenvolvida ao longo dos últimos dois séculos, mas também e sobretudo aquilo que hoje damos como adquirido no campo da Justiça Social.
Professora de Direito na Universidade Católica Portuguesa