Ao longo da história, a politização de certas questões permitiu poupá-las à inevitabilidade, inscrevê-las na discussão pública e convertê-las em objeto de livre decisão. A grande politização que nos espera é a do mundo digital. Hoje podemos garantir que no século XXI, o digital é o político.
Daniel Innerarity (2021), Uma teoria da democracia complexa, p:388.

Revolução digital, economia das plataformas, sociedade em rede, bens comuns colaborativos, vem aí a república digital. Assim, a minha tese é fácil de enunciar: depois do estado sólido da modernidade e do estado líquido da pós-modernidade é chegado o momento do estado gasoso da república digital. Todavia, perante a ambivalência e a duplicidade desta enorme revolução digital recordo de novo George Orwell na obra 1984, quando evoca as três palavras de ordem inscritas na fachada branca do Ministério da Verdade: Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força. Vejamos alguns aspetos desta república digital, sobretudo aqueles que nos relacionam com o futuro Estado-administração.

República digital, estado-plataforma e sociedade volátil

Na seta do tempo, sucedem-se os estados da matéria. Na modernidade, tudo o que é sólido dissolve-se no ar (Marx, 1848), na pós-modernidade tudo é frágil, fugaz e efémero, isto é, líquido (Bauman, 2000), agora, é a vez da pequena teoria da volatilidade (Innerarity, 2021).

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A república digital, na nossa aceção, não significa uma sociedade dominada pelo código algorítmico, mas, antes, uma sociedade onde os recursos cognitivos e o saber distribuído são colocados ao serviço da sociedade em rede, dos seus bens comuns e do bem-estar dos cidadãos. E é assim porque o código algorítmico não tem inteligência institucional e, muito menos, capacidade para gerar inteligência coletiva e estratégia colaborativa.

Uma das facetas mais intrigantes do próximo futuro é aquela que diz respeito à aceleração e divisibilidade tecnológicas e sua transferência para os domínios infinitamente pequenos da nossa liberdade individual, isto é, os pequenos nadas da nossa vida quotidiana que, agora, são transformados em objetos de consumo industrial que, doravante, ficam ao alcance de uma oferta digital ou digitalizada, ao dispor da conexão generalizada da internet das coisas ou da indústria digital de serviços personalizados.

Um caso particular da república digital é a economia do Estado-plataforma que podemos associar ao tema da reforma do Estado-administração. Não se trata, apenas, de converter um estado-informático num estado-digital, mas de converter uma cultura organizacional hierárquica e vertical, o estado-silo, numa cultura organizacional participativa e colaborativa, o estado-plataforma. Com efeito, o que aqui sugerimos é uma alteração substancial no sistema de valores e na cultura política do Estado-administração, sabendo nós que o Estado central, o Estado local e o Estado social são os pilares essenciais do velho Estado clientelar do século XX e, desde logo, as principais fontes de alimentação do sistema político-partidário ainda vigente. Seja como for, a revolução digital é imparável e mudanças profundas ocorrerão nas relações entre a sociedade civil, o Estado e as plataformas digitais. Vejamos algumas dessas futuras interações da república digital.

  1. As tecnologias digitais, devido à sua própria natureza, atomizam relações e relacionamentos e transformam tudo em produtos e serviços, ou seja, tudo está montado para gerar valor e ser objeto de apropriação privada e as plataformas serão o dispositivo tecnológico dessa atomização-privatização-personalização das relações no próximo futuro;
  2. As tecnologias digitais vieram revelar não apenas o envelhecimento da função pública, mas, também, o uso e abuso de serviços em regime de outsourcing que, gradualmente, desclassificaram os serviços do Estado-administração e os perfis profissionais da função pública, ao mesmo tempo que o lobbying corporativo ia capturando e esvaziando muitas funções técnicas do Estado;
  3. Na república digital, pelo menos numa primeira fase, a chamada modernização administrativa irá confundir-se com negócio informático e mercados públicos, pois é necessário dar satisfação à clientela corporativa que rodeia o Estado-administração; ou seja, é necessário estar avisado para não cometer erros de avaliação em matéria de modernização administrativa;
  4. Na república digital, a economia das plataformas abre uma porta para a descentralização de atribuições e competências para os municípios e agrupamentos de freguesias e, de uma maneira geral, para a reconfiguração e gestão de serviços públicos; um dos aspetos centrais da nova cultura organizacional é o grau de literacia digital da população em geral, e não me refiro à manipulação de dispositivos inteligentes, reporto-me a questões de cultura digital que implicam a coprodução de serviços ao público;
  5. Na república digital, o acesso aos dados públicos cria uma grande zona de interface com a sociedade civil e abre uma via experimental para fazer explodir o Estado-plataforma em múltiplos modelos e formatos de plataforma colaborativa, bem como novas categorias e tipologias de bens e serviços em regime de coprodução com o cidadão-utente; esta abertura dos dados públicos é uma oportunidade única para trabalhar em estreita cooperação com incubadoras e startups exteriores à administração;
  6. Na república digital, o acesso livre e o governo aberto e interativo significam uma pequena revolução na forma de fazer política pública e regulação de política pública; cobrir todo o território, conectar todos os cidadãos, cumprir um programa de literacia digital, atribuir uma identidade digital aos cidadãos, criar regras para a proteção de dados pessoais, definir as condições e os termos para a cogestão dos bens comuns colaborativos, assim como atribuir uma licença colaborativa para a sua utilização ulterior, eis algumas variáveis essenciais para a política regulatória do Estado-plataforma nos próximos anos.

República digital e governação algorítmica

República digital e sociedade algorítmica são conceitos compreensivos, mas convergentes. Nunca se falou tanto em plataformas digitais, aplicações, big data e cloud computing, inteligência artificial, algoritmos e governação algorítmica. Ficamos, assim, com a sensação agradável de que há uma promessa que se quer cumprir, que estamos a cultivar um novo espaço público e a abrir um novo campo de possibilidades. Ao mesmo tempo, porém, há um lado mais furtivo e menos luminoso do problema que merece a nossa atenção, que procede por inversão dos termos da equação, onde os meios tomam conta dos fins e onde a inovação política e social corre mais lentamente e atrás da ambivalência da sociedade algorítmica.

Dito isto, não é indiferente o modo como o processo geral de digitalização irá decorrer, pois existe o risco real de uma mercantilização das opções e modalidades do negócio digital atropelarem e prevalecerem sobre o processo mais geral de literacia digital que, como sabemos, não se reduz ou confunde com a simples aquisição de gadgets e dispositivos tecnológicos. Se tal acontecer, se a desigualdade no acesso e na literacia digitais for uma realidade, assistiremos à redução e empobrecimento do espaço público e a uma verdadeira cacofonia nas redes sociais que prejudicarão, inelutavelmente, o desenvolvimento do pensamento crítico. De uma forma esquemática, vejamos algumas facetas desta nova sociedade algorítmica.

  • O ouro negro, os nossos dados pessoais: recolhidos em múltiplos dispositivos fixos e móveis, são objeto de uma filtragem e tratamento em grandes centros de dados por intermédio de protocolos e procedimentos matemáticos chamados algoritmos; o resultado desse processamento apresenta-se sob a forma de perfis e padrões de comportamento personalizados que são depois vendidos a empresas de marketing e publicidade ou diretamente às grandes empresas de distribuição e retalho;
  • Um modelo extrativista com duas faces: os cidadãos internautas, utilizadores de redes e plataformas, são presas fáceis de um modelo extrativista de acesso praticamente universal e gratuito, onde todos somos produtores e fornecedores de uma gigantesca massa de informação pessoal, muita dela subliminar, num ambiente informacional vertiginoso e hipnótico, que tem tanto de benignidade como de toxicidade; estes mercados de duas faces, gratuitos a montante e pagos a jusante, são designados de mercados biface e são eles que proporcionam as receitas gigantescas às grandes plataformas digitais;
  • O império dos mestres algoritmos: no plano cognitivo não interessa o contexto, a singularidade ou a significação dos dados recolhidos, ou seja, a nossa subjetividade não é tida em conta, não há lugar para a improvisação, somos editados pela governação algorítmica como um simples perfil, somos, digamos, coisificados; não há eventos, hipóteses sobre o real ou pensamento sobre a realidade, os dados são a matéria-prima e são eles a fonte e a origem da realidade; o que interessa é a calculabilidade desses dados brutos e a correlativa hiperindexação do indivíduo;
  • Uma crise da verdade e do nosso universo comunicacional: uma crise de interpretação e leitura do mundo, se quisermos, uma crise da nossa verdade, que alguma literatura denomina de pós-verdade; a prevalência dos dados e a verdade estatística cortam o nexo de causalidade entre inteligência racional e emocional que, em si mesmo, informa o princípio geral da liberdade humana; ao trocarmos progressivamente o sistema operativo do nosso dispositivo alfabético, rico simbolicamente, por uma linguagem binária ultra simplificada e pobre simbolicamente, empobrecemos o princípio geral da liberdade humana;
  • Ubiquidade, narcisismo digital e cidadão aditivado: estamos demasiado distraídos com os brinquedos tecnológicos para dar atenção à comunicação simbólica e sem comunicação simbólica deixamos de produzir humanidade e uma verdadeira cultura de cidadania; a sociedade algorítmica alimenta-se da hiperinteligência dos dispositivos tecnológicos e, obviamente, da adição digital provocada junto dos utilizadores que não percebem que o produto somos nós, tal é a ubiquidade e o narcisismo digital que nos mantêm como os idiotas úteis de serviço;
  • Onde há sensores há censores: os sismógrafos que registam os nossos dados infrapessoais são uma espécie de guarda pretoriana avançada que atua em nome e benefício dos senhores do capitalismo digital e da governação algorítmica, uma nova estrutura de poder para gerir a incerteza e a insegurança; ou seja, está aí a inteligência artificial para converter a inteligência racional dos humanos em inteligência estatística e matemática das máquinas inteligentes e os nossos comportamentos previsíveis em comportamentos preditivos e ditados pelos algoritmos; de resto, se os idiotas úteis forem muito numerosos, como aliás se comprova com factos recentes, estarão reunidas as condições para lançar regimes autocráticos, iliberais e populistas.

República digital, as questões pendentes

Tendo bem presente que há uma distinção fundamental entre os gigantes tecnológicos das plataformas globais e as pequenas plataformas e aplicativos de comunidades locais e/ou instituições domésticas, as questões mais pertinentes acerca da economia das plataformas podem ser resumidas do seguinte modo:

  1. Qual é a proveniência das plataformas, globais e made in?
  2. Qual é o modelo de negócio que adotam, extrativista ou colaborativo?
  3. Até onde as plataformas alteram os hábitos e rotinas do consumidor/utente/utilizador?
  4. Em que medida contribuem para melhorar o grau de literacia e acesso digital?
  5. Quais os efeitos diretos e indiretos sobre os mercados de trabalho?
  6. Que perturbações introduzem nas cadeias de valor mais tradicionais?
  7. Que relações estabelecem com as coletividades territoriais e as economias locais?
  8. Que impacto têm sobre o rendimento e a fiscalidade locais?
  9. Qual o modelo de ocupação do território, geram mais dispersão ou aglomeração?
  10. Que relações com as instituições de ensino superior e o emprego jovem qualificado?

As respostas a estas questões, que nos conduzem da sociedade do valor-trabalho para a sociedade do valor- ou valor-informação são, só por si, um campo imenso de investigação e uma agenda política fundamental em matéria de economia das plataformas e república digital. Em cada caso, é, ainda, preciso ter em conta, na economia e gestão das plataformas, os efeitos de rede e a distribuição das externalidades positivas e negativas, a transformação do modelo de negócio que resulta da conversão de uma atividade em serviço, a maior customização e colaboração com o utilizador final, uma plataforma concebida em coprodução e cogestão, etc.

Notas Finais

Para terminar, dois avisos. Na república digital, e em resultado da ambivalência da sociedade algorítmica, tenhamos consciência de que a nossa rastreabilidade será explorada exaustivamente por mestres-algoritmos em ordem a produzir padrões supra-individuais que antecipem, orientem e condicionem o nosso comportamento. Além disso, não deixemos que a inteligência artificial tome conta da nossa inteligência racional, nem que a arte emocional das relações humanas seja trocada pela caricatura de uma bricolage social ou por uma bolha mais ou menos tribal nas redes sociais.

Na república digital, a sociedade algorítmica é, tudo leva a crer, uma nova estrutura de poder para gerir a incerteza e a insegurança, pública e privada. Em consequência, emergirão uma nova regulação política e jurisdicional e novas figuras e protagonistas: os operadores, os reguladores, os cuidadores, os procuradores do interesse público e privado. Tomemos, porém, muito cuidado. Como a inovação política e social corre muito mais lentamente, há o risco de ficarmos prisioneiros da elevada toxicidade da sociedade algorítmica. Doravante, na república digital, entre sensores vigilantes e censores furtivos, tudo pode acontecer, mesmo o absolutamente imponderável.