Durante a inauguração do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, em Peniche, no dia 27 de Abril, o Presidente da República (PR) Marcelo Rebelo de Sousa defendeu que Portugal tem o dever de “liderar” um eventual processo de reparação às ex-colónias. O motivo principal para a apologia deste processo pareceu ser a preservação da “capacidade de diálogo” com os países do antigo império português. Para Marcelo, o assunto ou a possibilidade de efetuar “reparações” pode evitar o que terá acontecido a “outros países que, tendo sido potências coloniais, (…) estão a ser convidados a sair, a bem ou a mal, dos países onde ainda têm alguma presença”. A pior parte veio depois, quando disse que Portugal devia assumir “total responsabilidade” pelos crimes coloniais cometidos e “pagar os custos”, tendo tentado remediar-se nas palavras seguintes, quando afirmou que “reparação” não seria necessariamente sinónimo de “indemnização”. O PR insistiu naquilo que já havia defendido num jantar com correspondentes da imprensa estrangeira, ocorrido dois dias antes do 50.º aniversário do 25 de Abril de 1974, onde se comprometeu a fazer tudo para “reparar”, para “pagar os custos”, desde os “responsáveis” que “não foram presos” aos “bens que foram saqueados e que não foram devolvidos”.

Estas afirmações não escaparam nem aos alarmes e descontentamentos dos comentadores e figuras políticas mais próximas de Marcelo. Miguel Sousa Tavares, por exemplo, achou que o PR tratou o assunto das reparações da colonização com “leviandade” e que chamou à atenção dessa questão na proximidade de uma data que exigia especial cautela para promover a união entre os portugueses. Na verdade, nessa data nunca houve união, mas isso é tema para outro artigo. Para além disso, Tavares considerou estes comentários do PR como evidência de que Marcelo está “fora de controlo” e que tenta “fazer a diferença” à custa da postura adequada de um chefe de Estado.

É razão para ficarmos relativamente descansados com as posições tomadas pelos líderes dos partidos à direita do Partido Socialista (PS) quanto a estas derivas verbais do PR, se quisermos ser simpáticos. Apesar de não faltarem traidores ao liberalismo clássico e original de Edmund Burke, Benjamin Constant, Alexis de Tocqueville e Annes Robert Jacques Turgot no partido que lidera, Rui Rocha, da Iniciativa Liberal (IL), bem disse que a história não exige “penitência” e que a liberdade é incompatível com qualquer sentimento de necessidade de “indemnizar terceiros pelo nosso passado”. Foi até mais longe, procurando relacionar-se com a atualidade, acusando o PR de ser um “porta-voz de sectarismos importados”. Chegou a falar da época em que nos situamos como uma em que não se “pode falar na verdade de nada”, o que obriga a reconhecer a necessidade de “combater esse wokeísmo desnaturado, em que tudo se infiltra, que quer acorrentar as gaivotas do pensamento e da expressão”. Pelos vistos até no chefe de Estado se infiltrou.  André Ventura, do Chega, não perdoou. Não aceitou que as afirmações de Marcelo fossem consideradas apenas um “deslize”, mas sim como configurando uma “traição à pátria”. Recordou, aliás, que Marcelo não havia sido “eleito pelos guineenses, pelos brasileiros nem pelos timorenses”, mas sim pelos portugueses. O primeiro-ministro Luís Montenegro já esclareceu que o seu executivo não está a planear nenhum processo ou programa de reparação pelo passado colonial português e que não entrará em divergências com a “linha” seguida pelos executivos anteriores. Num comunicado da Presidência do Conselho de Ministros, o Governo defendeu a continuidade dos “gastos e programas de cooperação de reconhecimento da verdade histórica com isenção e imparcialidade”.

Mal ouvi Marcelo a defender aquilo que defendeu num jantar quase na véspera do 25 de Abril, achei que havia feito afirmações descontextualizadas e inapropriadas para quem quer que feridas eventualmente existentes nas relações entre Portugal e os países lusófonos não se alarguem. Para além disso, vi em Marcelo uma disponibilidade extravagante para faltar ao respeito dos portugueses, nomeadamente àqueles que há mais de meio século receberam ordens ou se haviam voluntariado para irem às terras longínquas de Portugal extra-continental defender o seu país daqueles que queriam tomar à força o território que pertencia ao nosso país. Para além disso, pareceu-me uma falta de humildade para com todos os portugueses forçados a abandonarem as suas casas no território português extra-europeu e a deslocarem-se mais que aflitivamente por vários quilómetros para outra parte do país que, apesar de pronto para os acolher, não se encontrava preparado para os remediar.

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Nós já estávamos relativamente habituados a assistir a políticos e a líderes de organizações importantes (não só de nações e de países) a justificarem a violência e reparações incidentes sobre países ocidentais e ex-coloniais. Dinesh D’Souza, num dos seus mais conhecidos ensaios, Two Cheers For Colonialism, menciona os exemplos de Osama Bin Laden, o antigo líder da organização terrorista Al-Qaeda, e Jesse Jackson, o pastor batista norte-americano de causas progressistas, conhecido por ter pescado aquilo que pôde das actuações do New York Police Department (NYPD) para denegrir os polícias durante uma era de ouro de combate ao crime na cidade de Nova Iorque, durante a década de 1990: o primeiro justificou o terrorismo como tentativas dos povos não-ocidentais subjugados de responder à medida dos atos perpetrados pelos opressores ocidentais; o segundo tem sugerido ao Ocidente a efectuação de pagamentos de reparações pelo esclavagismo e pelo colonialismo às minorias em todo o mundo e aos nativos dos países do Terceiro Mundo.

As declarações de Marcelo são o reflexo de um campo de estudo normalmente referido como “estudos anti-coloniais”, “estudos pós-coloniais” ou “estudos subalternos”, sendo provavelmente o seu intelectual mais influente o francês (natural das Antilhas francesas) Frantz Fanon, no Terceiro Mundo, e o seu intelectual mais proeminente no mundo ocidental, o orientalista Edward Said. O PR insistiu nos seus discursos naquilo que são, segundo D’Souza, as três principais premissas da teoria da opressão subjacente ao anticolonialismo e a muitas ideologias antiocidentais. Em primeiro lugar, o imperialismo e o colonialismo são dois males exclusivamente ou predominantemente ocidentais infligidos sobre os povos do Terceiro Mundo (quando a expressão “terceiro mundo” não for considerada ofensiva). Em segundo lugar, o colonialismo fez com que o Ocidente tenha tido proveito dos recursos dos países sub-desenvolvidos, tendo o primeiro enriquecido à custa do atraso dos segundos. Por último, os descendentes do colonialismo estão piores do que estariam num cenário em que o colonialismo nunca tivesse existido. A noção de que os povos ocidentais, incluindo os portugueses, navegaram para sul com o objetivo de roubar, ocupar, governar e explorar terras longínquas em redor do mundo é emocionalmente apelativa e conquistadora dos corações de muitos académicos e activistas. E, claro, de todos aqueles que eles querem “domesticar”. Para além de conseguir condicionar qualquer tipo de reflexão sobre o nível de desenvolvimento das ex-colónias, na sua maior deixadas para trás em condições de miséria pelos países ocidentais (ora por vontade própria, ora pela intimidação de movimentos independentistas e guerrilhas), as teorias de opressão anti-colonialistas são uma fonte de formulação e de implementação de políticas igualitárias. Na prática, essas políticas refletem a visão de que, nas palavras de D’Souza, “o Ocidente tem posses dos “bens roubados” de outras culturas e “ que “tem a obrigação moral e legal de proceder a alguma forma de reembolso”. Aqui, “reembolso” poderá ser restituição, retribuição ou reparação.

É deprimente ver o PR do meu país a perder o seu tempo com tentativas de busca de critérios de justiça social que de “justiça” não têm nada. Nós, portugueses, nunca pedimos reparações ao Império Romano, aos Suevos, aos Visigodos, ao Árabes, aos Espanhóis ou aos Franceses por terem entrado por território português adentro e nos terem ocupado, por mais ou menos tempo. O PR não deveria agitar os portugueses e constituir um exemplo de um chefe de estado que cede àqueles que têm pouco mais que fazer do que averiguar quais foram os ancestrais que fizeram o quê e quando é que fizeram isto ou aquilo. O PR está a participar, pelo menos desde o 23 de Abril, numa investida contra Portugal e, até certo ponto, outros países do Ocidente. É muito graças a Portugal que o Ocidente se tornou comparável e, mais tarde superior a antigas grandes civilizações como a China imperial e o Império Muçulmano-árabe em termos de riqueza, de conhecimento ou capital cultural, de exploração, de aprendizagem, de enquadramento institucional, de tecnologia e de poder militar. Assim como Portugal chegou a certas partes da Índia, a Moçambique, a Angola, a Cabo Verde, a São Tomé e Príncipe, ao Brasil e a Timor, o restante Ocidente foi capaz de dominar quase todas as civilizações então existentes até ao século XIX. Portanto, foi o Ocidente, a que Portugal orgulhosamente pertence, que reduziu a sua própria disparidade com antigas potências imperiais. Se foi graças à exploração dos países de África, da Ásia e da América que os países ocidentais ascenderam, então porque é que não havia seringueiras, plantas de onde se extrai o látex para o fabrico de borracha, na Malásia, cacaueiros em África ou chá na Índia antes da chegada de países como Portugal e a Grã-Bretanha a esses territórios? Na verdade, foram os Britânicos que trouxeram as seringueiras da América do Sul, que trouxeram o chá da China e que ensinaram os africanos a cultivar cacau. Antes do século XV, não havia muito que saquear no que vieram a ser as colónias dos países ocidentais. Quanto a Portugal, um país que, baseando-nos em Martin Page (autor da obra A Primeira Aldeia Global), antes da expansão marítima tinha metade do tamanho do estado da Florida (nos EUA) e dois terços da população do mesmo, o seu povo nunca se deverá esquecer que ensinou os africanos sob a égide do seu império a protegerem-se contra a malária, que introduziram na Índia o ensino superior, o caril e as chamuças e que levaram ao Japão a tempura e as armas de fogo. Para além disso, nós, portugueses, demos a conhecer a povos de terras longínquas, que abandonámos há cinco, seis décadas ou dois séculos (no caso do Brasil), o cristianismo e a língua portuguesa, que continuam a ser prezados por muitos habitantes de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Brasil e outras antigas colónias. E fomos nós, portugueses, que descobrimos o caminho marítimo para a Índia e o Brasil, países integrantes dos atuais BRICS, a organização internacional composta por países emergentes.

Afirmar que o primeiro-ministro português tem “comportamentos rurais” e que o ex-primeiro-ministro é “lento” por ser “oriental” já poderá indicar que o nosso PR poderá não saber de que cargo é que é titular e por que sítios é que passa. Mas comunicar em comemorações e eventos de cariz diplomático que Portugal ainda tem muito que fazer para compensar ou reparar aquilo que fez às suas ex-colónias é um dos exemplos mais deprimentes de como a ideologia woke se tem infiltrado nas nossas instituições. Será que Marcelo, para desviar a atenção do caso das gémeas brasileiras e do esfriamento das relações com o seu filho, quis encarnar o papel de herói e de aliados sagrado dos míticos explorados contra os míticos exploradores? Estará o PR assim tão desesperado ao ponto de normalizar as teorias de opressão nos seus discursos e intervenções, esperando aplausos dos ideólogos woke, de esquerdistas e de pseudo-liberais de dentro e fora de Portugal e o comodismo ou da fúria dos portugueses? Espero que o nosso conhecimento e o nosso orgulho na nossa história, a bela história de Portugal, sejam ainda suficientes para ver no que Marcelo proferiu uma traição ao povo português. Marcelo passou a ser um protagonista de guerras culturais movidas por uma esquerda que não hesita, nos dois lados do Atlântico, em aproveitar-se da existência de liberdade académica e política para normalizar a autoflagelação dos povos e encorajar a dissolução progressiva das identidades nacionais. Pagará com o tempo.