Durante estes dias, fomos visitar alguns edifícios da baixa de Lisboa, entre eles igrejas e museus, e não pude deixar de reparar nas suas paredes, algumas propositadamente descascadas ou feridas pelas intempéries com o objetivo (creio) de nos avivar a memória, expondo as suas mazelas, mas também a sua robustez e resiliência diante das adversidades, entre elas o fatídico terramoto e maremoto de 1755, ou o incêndio de 1959.
Não pude também de deixar de criar, na minha cabeça de mediadora familiar, similitudes a outras estruturas, entre elas a família ou sistemas familiares (como queiram!). E claro, pus-me a refletir sobre quais os fatores (intrínsecos e extrínsecos) promotores de proteção e resiliência; que competências, habilidades, vulnerabilidades e fragilidades habitam nos sistemas familiares, que se pretendem robustos e capazes de responder aos múltiplos desafios e pressões sociais no mundo globalizado do século XXI, neste pequeno pixel à beira mar plantado?
Sim! Porque as avalanches da globalização e todas as intempéries inimagináveis, costumam chegar muitas vezes, ou quase sempre sem aviso prévio, … ou talvez não!?!… se pensarmos que antes do terramoto de 1755, já tinham ocorrido pelo menos três grandes abalos só em Lisboa (1551, 1575 e 1724), bem como no Algarve (1719 e 1722) .
Observamos que a complexidade que caracteriza o interlaçar de vínculos nas relações, mostra-nos a capacidade de resiliência dos seus protagonistas principais, e nas relações familiares não podiam ser diferente. As famílias enquanto sistema, refletem a “fibra” ou a “malha” do tecido social e a sua capacidade em se regenerarem ou de se reinventarem diante dos múltiplos desafios, pressões e vicissitudes a que se encontram sujeitas, tal como podemos constatar no pós dos episódios de destruição referidos anteriormente. E ultimamente, podemos afirmar, estes desafios e pressões, proveem sobejamente de um mundo cada vez mais globalizado que imprime uma velocidade e fluidez baumaniana aos relacionamentos. Sistemas humanos esses, que outrora eram diferentes na sua composição, constituição, caracter e função, e inferiam robustez, proteção, sentido de entreajuda e pertença nos relacionamentos que atualmente e de acordo com o filósofo e sociólogo Edgar Morin “deixam de estar incondicionalmente subordinados à instituição coletiva; já não se sentem irrevogavelmente ligados e podem romper essa ligação por decisões individuais” ou até mesmo escolher nunca vir a estar “maritalmente” vinculados.
De acordo com a PORDATA , existem atualmente em Portugal mais solteiros que casados, mais divorciados que viúvos, mais filhos que nascem fora do casamento e famílias (re)compostas com “os meus, os teus e os nossos”, bem como agregados monoparentais, maioritariamente compostos por Mãe e filho(s).
Além disso, a percentagem de divórcios em Portugal em 2020, fixava-se em 91,5%, em 2021 em 59,5% e em 2022 de 50% (valor provisório). Uma percentagem que acompanhou o decréscimo de casamentos celebrados no mesmo período; onde se registou uma diminuição da população casada de menos 41% comparativamente a 2011 e o aumento da população que vive em união de facto na casa dos 11,2% face ao mesmo ano. Contudo verificou-se um aumento das famílias de 2,6% face ao mesmo período.
Hoje, com facilidade de desvinculação e reconstituição [da família] que coloca à prova os elos sólidos que a instituição milenar outrora provia, tornaram-se agora líquidos e efémeros, convertendo-a , segundo Ulrich Beck, numa “instituição zombi”. O cimento do casal, afirma Edgar Morin, já não é a aliança entre duas famílias, mas sim o amor que cria e liga o casal. Um amor que nasce do ímpeto da busca da novidade, mas que se deteriora ao primeiro sinal de contrariedade e imediatamente substituído por outra novidade que a substitua. Ao fim ao cabo, enquanto seres relacionais, procuramos ser amados esquecendo-nos de amar. Vivemos aterrorizados com o facto de caminharmos sozinhos, que nos esquecemos de cuidar de quem se dispõe a caminhar connosco.
A família está em crise, a conjugalidade está em crise, a parentalidade está em crise, contudo e paradoxalmente – afirma Edgar Morin – o casamento, embora em crise, torna-se (ainda) a resposta à crise da solidão individual, ao ponto de se alegar que a família morre e ressuscita continuamente.
De acordo com o sociólogo Anthony Giddens, a investigação sugere que o divórcio não é um reflexo da infelicidade, mas antes uma determinação cada vez maior para fazer do termino de uma relação, um período gratificante e satisfatório, que tendencialmente e na sua maioria, ocorre num curto espaço de tempo.
Não é por isso inusitado, que a “célula básica da sociedade” esteja sujeita às múltiplas e frenéticas transformações sociais, mas também a ferozes pressões culturais que nos assolam e em grande medida, instigados pela globalização com a sua ação globalizante. Por outro lado, enquanto sociedade global, a primeira função de qualquer comunidade, de acordo com o juiz desembargador Pedro Vaz Patto, é a de assegurar a sua própria sobrevivência e renovação e é por esse motivo que a família é considerada um bem público e bem social a preservar, sendo considerada a fonte vital das sociedades mais portadoras de futuro, ao prover o capital humano, espiritual e social primário de uma sociedade de acordo com o filósofo e sociólogo Pierpaolo Donati. Por sua vez, a família enquanto escola de socialidade (e relacionalidade) assente na riqueza da diferença e complementaridade, é segundo Pedro Vaz Patto, lugar de descoberta do eu em relação e da convivência com o outro e o diferente, convertendo-a em lugar de realização da pessoa humana enquanto ser em relação, de acordo com o filósofo Jean Lacroix, enquanto espaço inter-cultural e intergeracional por excelência, tendo como pano de fundo, as suas forças e fragilidades, riscos e potencialidades.
Num mundo cada vez mais global onde a diversidade é entendida (e bem) como uma riqueza a preservar, podemos afirmar que, se há um denominador comum na organização dos Povos, este é a família, enquanto valor social.
A atualidade evidente na frase: “[é] mais nobre entregar-se por completo a um indivíduo do que trabalhar diligentemente pela salvação das massas”, proferida por Dag Hammarskjöld, antigo Secretário Geral das Nações Unidas e Prémio Nobel da Paz, leva-nos a refletir sobre as habilidades humanas do ato de cuidar e da escolha em nos entregarmos de maneira exclusiva ou mesmo oblativa ao outro – na construção de uma relação que se deseja única, irrepetível e arrebatadora, mas que também é frágil como uma planta e orgânica como um rio, enquanto projeto e empreendimento comum, bem como a refletirmos sobre a capacidade de resiliência necessária e intrínseca ao ato do cuidar e na criatividade generativa de respostas às múltiplas adversidades e contrariedades que a vida a todos presenteia, independentemente da nossa localização, estrato social, género ou crença.