Hoje 27 de janeiro de 2022, comemora-se o Dia Mundial da Memória do Holocausto, criado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em finais de 2005. Uma data que possui um significado muito especial, porque neste mesmo dia, em 1945, ocorreu a libertação do principal campo de concentração nazi, Auschwitz, localizado na Polônia. Nele passaram Viktor Frankl, Anne Frank, o seu pai Otto Frank, Edith Eger (autora do livro: A Bailarina de Auschwitz, Primo Levi, Elias Wiesel, entre outros.

Janina Bauman, primeira esposa de Zygmunt Bauman, sociólogo polaco, falecido em 2017, que tal como Anne Frank, escreveu um diário que mais tarde se tornou um livro: Inverno na manhã. Uma jovem no Gueto de Varsóvia, judia de um bairro da capital da Polónia, Varsóvia, que relata a resistência e a fuga dos horrores da guerra; de quando o seu bairro residencial se transformou num gueto; a perseguição dos judeus, muitos deles seu vizinhos de porta, o seu dia-a-dia, tomado pelo medo, que fez com que não consegui-se viver mais, a sua rotina diária. Janina mais tarde foi levada para um lugar seguro, deixando para trás os seus relatos, pois por uma questão de segurança, foi aconselhada a não os levar consigo. Mais tarde, quando volta ao local onde os tinha guardado, reencontrou-os e, após outros anos, resolveu enfrentá-los, transformando-os numa emocionante leitura sobre o quotidiano da guerra na sua cidade natal. 

No seu livro, Janina fala sobre o lugar das mulheres na guerra, das muitas formas de solidariedade que via a acontecer ao seu redor, fosse por quem partilhava a mesma crença, a mesma condição – de vítima de Hitler – fossem quem pertencesse oficialmente ao regime totalitário do ditador, mas que de forma altruísta procurava abrigar quem estivesse a ser perseguido independentemente da sua identidade política e cultural, corroborando com aquilo que Anne Frank repetia silenciosamente à sua melhor amiga, Kitty, o seu diário: “Apesar de tudo, acredito que as pessoas são realmente boas de coração”.

Contudo, sabemos que também existiram quem se tenha aproveitado da vulnerabilidade da condição de muitos dos judeus que viveram os horrores dos campos de concentração. Sem escrúpulos e desprovidos de sentido de justiça, renegavam aos valores inatos à condição do ser-se pessoa onde a ética, e a moral, mas também a solidariedade e a fraternidade (só para mencionar alguns), não tinham lugar no coração de quem denunciava alguém só por causa da sua crença e cultura. Sabemos também que muitas das vítimas do holocausto, foram denunciadas e traídas pelas pessoas menos prováveis, isto é, por pessoas da mesma família de fé. Judeus que traíram ou agiram violentamente contra membros da sua comunidade, apesar de dividirem a condição de vítima. Judeus que forçados a desistir dos outros para salvar a sua própria pele. Este é considerado o aspeto mais cínico do mal nazi, o de fazer com que judeus se voltassem contra judeus, hipnotizando alguns com uma melodia maliciosa, promovendo-os a ‘capos’, em troca de denúncias, de listas e estatísticas, jogando com eles um jogo de póquer do diabo*.

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Viktor Frank, na sua obra literária mais conhecida, apresenta os ‘capos’ como prisioneiros que actuavam como administradores que gozavam de privilégios especiais, que ao contrário dos outros no campo de concentração, não passavam fome – e segundo Frankl, prisioneiro nº 119.104 – deram-se melhor nos campos, do que durante o resto das suas vidas. Eram com frequência mais duros para os presos do que os furadas e batiam-lhes com mais crueldade do que os homens das SS. Estes ‘capos’ eram escolhidos naturalmente, apenas de entre aqueles prisioneiros cujo caráter prometia torná-los adequados a tais comportamentos e, se não correspondessem àquilo que se esperava deles, eram imediatamente retirados dos cargos (…) Cada pessoa era controlada por um uno pensamento: manter-se viva para a família que a esperava em casa (…) em geral, só conseguiam ficar vivos aqueles que, após anos a saltar de campo para campo, tinham perdido todos os escrúpulos na sua luta pela existência; estavam prontos a usar todos os meios, honestos ou não, até mesmo a força brutal , o roubo, a traição dos amigos, de maneira a salvarem-se. Nós que voltámos a casa, com a ajuda de muitas circunstâncias felizes ou de milagres, sabemos que os melhores de entre nós não regressaram*.

O recém lançado livro de Rosemary Sullivan, com o título: “The Betrayal of Anne Frank “ [A Traição de Anne Frank],apresenta a teoria de que a família Frank foi denunciada por alguém que pertencia à comunidade judaica de Varsóvia a troco de preservar a sua própria vida e a da sua família. Otto Frank, pai de Anne Frank e único sobrevivente da família, que trouxe à luz os escritos da sua filha durante o cativeiro, segundo a mesma teoria apresentada no livro de Sullivan, guardou um segredo amargo da sua família, isto é, o nome do seu traidor que pertencia ao conselho judaico criado pelos nazis para esse fim específico – para trair outros judeus. No final de um artigo elaborado por Gloria Tessler intitulado: “The betrayal of Anne Frank is a double tragedy [A traição de Anne Frank é uma dupla tragédia], termina afirmando que “o traidor é tão vítima como qualquer outra pessoa.”. Uma frase que me impressionou profundamente e me fez refletir, porque é uma frase que carrega em si o doloroso reconhecimento da culpa como mancha indelével que substitui toda a própria existência humana  que a memória coletiva não pode apagar.

No pós guerra, durante o processo de “desnazificação” – da sociedade alemã e austríaca, por parte dos países aliados -, que consistia em responsabilizar coletivamente estes dois países pelos crimes de guerra contra a Humanidade durante a 2ª Guerra Mundial. Viktor Frankl, enquanto ser humano e  prisioneiro em vários campos de concentração – viveu na pele horrores e privações do cativeiro, alimentado pela esperança de voltar para junto da sua mulher e família e que no final do martírio percebe que todos morreram nesses mesmos campos – foi um dos grandes opositores da dita campanha de culpabilização / responsabilização coletiva ou também conhecida de “culpa coletiva”expressão introduzida e defendida por Carl Jung -, que teve um enorme impacto na cultura alemã até aos dias de hoje*. Afirmava Frankl, que quem fala de culpa coletiva comete uma injustiça consigo próprio”*.

Talvez por aqui possamos entender um pouco o fundamento de base para a omissão de Otto Frank, que preferiu que, a sua família desconhecesse o nome do seu carrasco de morte, bem como esconder o facto de terem sido denunciados por um membro da sua própria comunidade, poupando-os a uma dupla dor e consequente descrença da força dos vínculos que unem companheiros de viagem na fé.

Sabemos que perdoar não significa necessariamente esquecer, contudo eliminar da nossa memória a força do golpe infligido, antes que sejamos consumados por ele, talvez seja a melhor escolha que poderemos fazer, para podemos encontrar a Paz que tanto procuramos, conscientes que somos demasiados limitados para carregar tamanha cruz, que ainda por cima não é nossa. Viktor Frankl, enquanto ex prisioneiro, apresenta a amargura comoum dos fatores que ameaçam prejudicar o caráter do preso – tal como Otto Frank ou qualquer um de nós seja no momento da sua libertação, seja no momento em que encaramos a verdade tal como ela é, ou seja, que ninguém tem o direito de fazer mal aos outros, nem mesmo quando alguém nos fez algum mal em primeiro lugar*.

E quanto ao carrasco dos Frank? Esse levou consigo a culpa para a sepultura. Que auto-esquecimento, que absolvição possível depois de ter denunciado um dos seus? Ele (o carrasco) era um homem marcado por defeito; como o bode expiatório que os nossos antepassados enviaram para o deserto com a marca de todas as nossas mãos no seu corpo, carregando pecados humanos, incognoscível, assustado e finalmente inocente*.