Os americanos usam o termo “accountability”, o meu avô usaria a expressão “contas certas”. Falo de responsabilidade, base essencial de uma cidadania responsável e de uma relação construtiva entre os cidadãos e entre estes e quaisquer entidades públicas ou privadas.
Eça de Queiroz, na sua “Campanha Alegre”, numa carta dirigida à Companhia das Águas perguntava: “se quando não cumpro a minha parte do contrato e deixo de pagar a água, V- Exas. Com toda a razão me cortam a água, que poderei eu cortar quando V. Exas não cumprem a vossa parte do contrato e não me fornecem água?”. Esta é a chave da responsabilidade: a tesoura costuma estar só de um lado. (Já agora, perguntei há uns anos a um presidente da EPAL se já havia a tesoura para os clientes e ele calou-se, diplomaticamente.
Responsabilidade passa por muitos níveis de organização e relação.
Começa no cumprimento dos acordos e contratos não escritos, como são exemplo as regras de relacionamento social, em que o respeito pelos outros, o ter consciência de que numa relação existem sempre duas partes, com direitos e deveres. Passa, por exemplo, por um professor dar aulas bem preparadas e motivantes e os alunos a elas assistirem com interesse e capacidade de participação ativa. Passa, por ser adequadamente atendido numa loja, por alguém que se esforça por saber o que vende e corresponder, o melhor possível, às necessidades do cliente – sem ser subserviente, mas antes, eficiente – garantirá o retorno do cliente e aumentará a segurança do seu posto de trabalho.
Continua nas relações empresariais. Como é que se compreende que, por exemplo, alguém que comprou um bem danificado de origem: um livro mal impresso, por exemplo, tenha de passar um calvário muitas vezes mal sucedido para o trocar. Esta prática só desprestigia as editoras e as livrarias (qualquer delas, independentemente de terem sido as vendedoras do bem, tendo relações contratuais com a editora não deveriam ter problemas em efetuar a troca), mas nem nas livrarias das editoras isso acontece. E depois queixam-se da fuga dos clientes… Multipliquem isto agora por todo o tipo de relações comerciais e contratuais.
Só mais um exemplo: há uns meses, numa obra em S. Sebastião, Lisboa, confrontei-me com este aviso espantoso: “Não nos responsabilizamos pelos danos causados por esta obra”. O aviso permaneceu lá (não sei se ainda lá está), mas ilustra bem a cultura de quem o põe, da Câmara e outras autoridades que o aceitam e do cidadão, que até é capaz de o engolir.
Responsabilidade é uma Câmara Municipal garantir, uma sinalética em condições e realmente informativa. Numa cidade, como em qualquer estrada do país, tem de se ter consciência de que há mais pessoas a circular do que os conhecedores habituais, e a ausência de sinalética adequada é uma fonte de risco de acidentes (quantas vezes o sinal está no desvio em dimensão reduzida e muitas vezes não cumprindo as regras mínimas de visibilidade) – quem circula e quer seguir nesta direção, muitas vezes tem de travar bruscamente e pisar um traço contínuo para seguir em direção ao seu destino (se teve a sorte de não ter chocado ou sido multado). Dou só dois exemplos da cidade de Lisboa: quem vem da Ponte 25 de Abril e quer ir para a Praça de Espanha defronta-se à saída de uma curva com o desvio para a mesma, com o tal sinalzinho colocado no fundo do triângulo do desvio. Tudo isto porque a sinalética de grandes dimensões sobre a avenida da Ponte foi retirada, há uns dez anos, quando esse acesso esteve cortado devido ao abatimento do Caneiro de Alcântara e nenhum responsável se lembrou de o tornar a colocar. Outro exemplo são túneis como o da João XXI e do Marquês onde a sinalização está no teto, pequenina, em cima dos desvios, sem avisos prévios, sem iluminação que a destaque e sem ser lavada para garantir a reflexão dos faróis. A quem poderemos cortar os custos dos acidentes que estas situações originam, como diria o Eça?
Poderia estar aqui indefinidamente a falar de exemplos camarários, mas subamos de nível (ou desçamos, conforme queiram considerar).
O Cartão de Cidadão! Era um dos progressos que iria modernizar e facilitar a vida do cidadão ao integrar, num único, vários cartões e ao permitir todo um conjunto de funções, inclusive a assinatura eletrónica. Sem querer trazer aqui polémicas várias sobre a sua possível utilização para controlar as nossas vidas ao estilo de Orwell: por exemplo ao registar as aquisições de tabaco nas máquinas automáticas, queria apenas referir o inferno que é a sua obtenção. Qualquer pessoa que tenha a infelicidade de o ter ou de ter de o obter, saberá do que falo. Filas infinitas, tempos de espera seculares, equipamento deficitário e avaliado, etc., etc. Quem é responsável? Porque é que tudo continua a arrastar-se há anos (desde a criação do mesmo), sem solução e com um aparente agravamento? É esta a modernização administrativa de que tanto se fala? Ou existem outras prioridades que não o bem-estar dos cidadãos? De novo, de tesoura em riste pergunto o que devo cortar e a quem, pelas horas de trabalho perdidas, o stress e a sensação de sermos tratados como animais sem direitos e só com deveres?
A propósito: o mesmo se passa com as cartas de condução que levam muitas vezes mais de um ano a emitir!
Modernizou-se e informatizou-se a administração, mas por qualquer motivo, por modernização entendeu-se muitas vezes aumentar os sistemas de controlo, registo, o que quer que seja, que levam a que o mesmo ato possa hoje levar o dobro ou o triplo das horas de trabalho, sem qualquer ganho efetivo, apenas com perdas desastrosas de produtividade, motivação e envolvimento cidadão.
Finalmente, os contratos. Percorro diariamente Lisboa e arredores e observo quilómetros quadrados de obras recentes onde uma percentagem muito significativa dos azulejos caíram. Como técnico questiono-me se regredimos na eficácia das colas-cimento. Como cidadão questiono-me que raio de contratos foram feitos que não responsabilizam o construtor pela reposição dos ditos azulejos? Que garantias não foram estabelecidas e acionadas. E porque é que, independentemente de tudo o resto não reparam as benditas paredes?! Lembrem-se do que disse o Mayor de Nova Iorque, Rodolfo Giuliani, sobre os vidros partidos: se a administração mostra desinteresse e relaxamento não substituindo um vidro partido, por mais irrelevante que seja, nenhum cidadão se sentirá obrigado a assumir os seus deveres e a consciência da cidadania vai-se esbatendo até às mais graves consequências.
Ainda os contratos. Observamos nos últimos anos aos mais díspares e escandalosos esbanjamentos de dinheiros nacionais em obras todas elas “tecnicamente” justificadas por estudos que garantiam a sua viabilidade e rentabilidade. Essas previsões falharam, estamos a pagar com língua de palmo essas previsões técnicas, esses pareceres milionários. Mas não consta dos contratos desses pareceres nenhuma cláusula de responsabilidade? É que aqui é um país inteiro que tem a tesoura em riste.
Esta cultura da irresponsabilidade é tão generalizada que chegámos ao extremo de ver um presidente de uma Ordem profissional, tomar posição sobre uma obra em debate, exprimindo a sua perspetiva pessoal, sem sequer se recordar que a sua função era antes a de inquirir se as normas profissionais e deontológicas que tinham fundamentado a decisão que ele pessoalmente contestava cumpriam o exigido nos termos do estatuto da Ordem a que presidia. E se tal não acontecia, acionar os mecanismos corporativos de penalização. Isto não obvia que pudesse dar a sua opinião pessoal, mas a esse título: pessoal.
Em suma, vivemos numa cultura da desresponsabilização. Todos viramos os olhos para o lado ou batemos na pessoa errada. Perdemos a consciência cidadã de que, da mesma forma que quando não cumprimos os nossos deveres fiscais somos obrigados a uma penalização, também temos de ter por garantido que o Estado não está lá para ser servido, mas sim para servir. Os meus alunos não são meus subordinados, mas sim cidadãos a quem eu tenho de servir da melhor maneira e com todo o meu esforço, porque esse é o meu dever profissional. O mesmo se aplica a qualquer outra relação social ou contratual e em especial às instituições que gerem o bem público. Acentuo, público, de nós todos, e não dos que o administram!
Não queria falar especificamente dos políticos, mas, obviamente, tudo o que atrás ficou dito aplica-se a eles. E aqui a responsabilidade não deverá ser medida tanto pelas promessas cumpridas ou não, mas pelos atos e omissões realmente executados, aqui centra-se um dos desafios centrais da nossa democracia – a consciência da responsabilidade não se ganha com uma penalização eleitoral, importa acionar os instrumentos que temos – nomeadamente um Tribunal de Contas que não tem poder de julgar, apenas de apreciar e uma cultura jurídica onde predomina a perspetiva do “respeitinho” e que em caso de dúvida, ao fim de 40 anos de democracia, continua a julgar segundo o princípio de “em dúvida, decide-se pelo Estado”.
Continuo com a tesoura na mão, mas apenas tenho ganho cabelos brancos e muitas crises de raiva (essas, infelizmente, irresponsáveis, admito).
Já depois de ter escrito este texto sobre coisas aparentemente pequenas, verifico que elas se expandem, de forma ainda mais ignóbil do que escrevi antes, à responsabilidade política. Também relativamente a esses, infelizmente a responsabilidade, materializada nas derrotas eleitorais não chega para haver uma consciência e um efectivo empenhamento no bem público.
Também, relativamente a eles, se impõe uma tesoura, materializada aliás, penso eu, em legislação existente mas não aplicada relativa à responsabilidade civil dos ocupantes de cargos públicos. Infelizmente para os nossos tribunais, o respeitinho continua a ser muito bonito.
E cá ficamos impotentes de tesoura caída, com todo o nosso sentido de honra e de empenhamento desfeito em fanicos.
Professor Universitário