É reconfortante para todos nós, esquecidos no tempo, ouvir falar dos retornados.

Hoje o programa Conta-Corrente, na Rádio Observador, dedicou parte da sua emissão ao tema “Quem são os nossos retornados”. Foi uma emissão de partilha, cheia de emoção e memórias de quem deixou África, mas onde para sempre o seu coração permanecerá.

Agradeço à Helena Matos e ao José Manuel Fernandes o tempo dedicado. Relembrou-nos África do espírito livre e inconformado, cores e cheiro da terra molhada.

Quem não tem no seio familiar pelo menos um retornado?

Foram milhares os retornados e milhares os refugiados das províncias ultramarinas.

Foram milhares aqueles que utilizaram as famigeradas pontes áreas onde os dias de espera por um lugar se transformavam em anos, a tristeza em revolta e a dor em gigante Adamastor.

Durante anos, a palavra Retornado foi utilizada de modo segregacionista e acutilantemente perversa, com sentido depreciativo para quem se queria dirigir aos… “brancos de segunda” e àqueles que… “vieram tirar-nos o trabalho”.

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Vítimas de discriminação e bullying de uma sociedade decadente, na maioria pouco culta, e que via nos retornados uma ameaça nunca dissimulada, mas também nunca verificada.

Foram anos de segregação, ressentimento e discriminação. Anos difíceis para quem é jovem e para quem escolheu que a vida deixasse para trás os amigos, a família, a casa, o seu povo.

Recordo vagamente estes brindes, na memória guardo apenas o que me aquece a alma e o coração; para a minha África, para o meu povo e cheiro da terra molhada.

Relembro turmas só com filhos de retornados porque a “turma dos bons alunos” não se podia imiscuir connosco. Rotulados com o que tínhamos (nada) rapidamente mostrámos que não importa ter, mas sim ser e, poucos fomos os que não venceram na vida.

Mostrámos quem éramos e donde viemos, refugiados de uma guerra para a qual não tínhamos sido consultados e sobre a qual nada ou pouco sabíamos, acordos de Lusaka, 25 de Abril e pouco mais.

Exceções à parte fomos respeitadores dos costumes e tradições de cada povo, amámos e fomos amados, demos, mas também recebemos, sobretudo amor dos povos que era o também o nosso.

Recomeçar não é fácil, sair da zona de conforto pior. Foram tempos de angústia, dor, para muitos, desespero fatal para outros, de ver vidas de trabalho perdidas, de família desagregada, de amigos até hoje nunca encontrados.

Muitos retornaram, mas a maioria, refugiados, ou brancos de segunda, souberam fazer o que melhor possuem do ADN de quem por África viveu. Trabalhar!

A força, determinação, resiliência, espírito de luta para superar adversidades e FÉ, fazem parte do ADN de todos quantos retornaram e a maioria mostrou essas capacidades e do nada fizeram tudo.

Uma sociedade evoluída, vê-se pela forma como acolhe os seus.

Mentes abertas e livres, cedo percebemos a prisão em que mentes estagnadas em preconceitos doentios e moribundos viviam.

Habituados à liberdade, à luta, à fraternidade e à igualdade entre diferentes cor de pele, sim, fomos criados a conviver e respeitar todos independentemente da sua origem, a nossa sociedade era jovem e, na maioria dos casos, sem preconceitos sociais e raciais.

Viemos sem medo e com esperança, de coração aberto e certos que a incerteza rapidamente se tornaria certeza e uma aliada para a vida.

Catapultámos a dor em amor, a perda em trabalho, a mágoa em resiliência e apesar de todas as barreiras institucionais, familiares e sobretudo sociais, silenciosamente, e sem apoios financeiros importantes e ou permanentes, mas com espírito lutador, empreendedor e resiliente, recomeçámos uma nova vida.

Apesar de tantas vezes insultada e humilhada, digo orgulhosamente que nasci em África, aplaudo de pé todos os que não conseguiram superar a perda, mas sobretudo aqueles que tiveram a coragem de partir para África e lá recomeçarem uma nova vida, pois só esses nos permitiram ser retornados ou refugiados e ter uma vida tão rica e preenchida, com quedas e recomeços, perdas e reencontros.