Foi nos finais de Março de 2020, durante o primeiro de quinze ou dezasseis “estados de emergência” e o primeiro de não sei quantos “confinamentos”. A “Notícias Magazine”, distribuída com o JN e o DN, ofereceu a capa e uma data de páginas interiores às dras. Graça Freitas e Marta Temido. Era um relato quase hagiográfico, em que ambas as senhoras se viam elevadas ao estatuto de guerreiras incansáveis no combate à epidemia. As guerreiras, coitadas, mal tinham tempo para comer (“Tenho comido mal”, informou sem se queixar a então ministra; “tenho feito saladas, com feijão encarnado ou abacate, e uns grelhados”, assegurou a dra. Graça) ou dormir (apenas da “uma às cinco e meia da manhã”, esclareceu uma das combatentes). A dra. Graça, imagine-se, nem sequer conseguia ouvir Jorge Palma ou cuidar devidamente das suas orquídeas. Ainda assim, ambas juravam: “Não somos heroínas, nem mártires, nem supermulheres, nem magas”. Obviamente, a “Notícias Magazine” discordava.

Todo o artigo transbordava louvor e veneração. Em cada depoimento, as protagonistas fingiam modéstia. Em cada parágrafo, a autora, Alexandra Tavares-Teles, babava veneração enquanto recordava-nos ao leitor o contraste entre a modéstia e a desmesura do trabalho em curso. Principalmente recordava-nos a sorte de, na luta com o tenebroso vírus, dispormos de duas santas sem sono nem grande apetite. Nem por uma vez se questionava a pertinência das medidas aplicadas, nem por uma vez discutia os respectivos custos. Só havia encómios às loucuras vigentes, que à data da publicação já cheiravam a desnorte e a irresponsabilidade. Na altura, li aquele amontoado de propaganda com o prazer dos pervertidos e decidi comentá-lo em público. Depois lembrei-me que um antigo colega da “primária” exercia funções editoriais na revista. E comentei na mesma. Num ápice, recebi uma mensagem furiosa do ex-colega, que não além de não voltar a falar-me tentou, felizmente em vão, convencer diversos amigos e amigas comuns a imitá-lo.

O artigo citado é susceptível de ser dissecado nas escolas de “comunicação social”, dado constituir um exemplo perfeito do que o jornalismo não deve ser e não é. Por azar, dentro do “estilo” o artigo está longe de ser único. Para não mudar de assunto, nos meses posteriores a Março de 2020, em que aconteceu Portugal liderar as tabelas internacionais de mortes por Covid, o tom subserviente face a incompetentes terminais manteve-se como regra com poucas excepções. E a regra estende-se ao tratamento “informativo” do governo, dos partidos, da economia e da sociedade, sempre subordinado a uma ortodoxia determinada pelos que tomaram conta do Estado e do pensamento. A bajulação de quem manda e o deleite acrítico de quem assina são um padrão (ia escrever “praga”) disseminado por boa parte do “jornalismo” impresso e televisivo da nossa paróquia. A propósito, o “estilo” parece inspirado pelos folhetos das próprias paróquias, ou pelos pasquins “regionais” pagos pela autarquia e dirigidos por um cunhado do vereador do urbanismo: o respeitinho e a reverência, pelo menos, são iguais e igualmente ridículos. E é o “estilo” da vasta maioria dos produtos da Global Media desde há anos.

Falo na Global Media porque é da Global Media que se fala, com a empresa em risco de fechar, o que é natural em qualquer negócio, com os funcionários sem receber, o que é grave, e – grita-se por aí – com a democracia em perigo, o que é absurdo. Seja da Global Media ou dos grupos que calhar, a democracia não carece deste jornalismo bem-comportado, aliás uma contradição em termos. Os simulacros de informação é que representam uma ameaça à democracia e, no limite, um sintoma de que a democracia não existe. Se não escrutina e incomoda, o jornalismo não é jornalismo. Se não for escrutinado e incomodado, o poder não é democrático. Por mim, que cresci e vivi décadas obcecado por jornais, não sentiria a falta de 80% dos diários e semanários que restam, e de 100% das televisões que sobram. E pelos vistos uma crescente maioria dos portugueses também não.

Os “media” tradicionais não estão a desaparecer por renunciarem ao jornalismo a sério, mas graças às mudanças do mundo que regularmente tornam anacrónicos ofícios outrora relevantes. É o contrário: os “media” tradicionais renunciaram ao jornalismo a sério por estarem a desaparecer, e por, na ausência de audiências e receita, julgarem que a solução depende dos desavergonhados “apoios”, os “apoios” que transformam redacções já de si algo obsequiosas em meras assessorias dos senhores que pagam.

Não me esqueço de uma ressalva. Por catequização universitária, deformação profissional, espírito de grupo e a genérica impressão de que a esquerda é mais propensa a comprá-los com subsídios, uma generosa porção dos jornalistas tendem a servir a esquerda com um empenho que nunca dedicam à “direita”. Se calhar, do que o JN e o DN necessitam não é de petições, “intervenções” ou vigílias na praça, e sim de uma vitória das “forças reaccionárias” a 10 de Março. Talvez então voltem a escrutinar o poder e, afinal, a praticar jornalismo. E continuem a não vender nada.

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