Em julho de 1976 a revista pornográfica Hustler lançou o concurso “Beaver Hunt”. As mulheres interessadas em participar teriam de enviar para a redação da revista fotografias suas de cariz pornográfico ou nudez explícita.
Para que as imagens passassem pelo escrutínio dos membros da redação, as participantes teriam de juntar uma declaração consentindo na publicação das suas fotografias e um pequeno texto com o seu nome, local de residência e fantasias sexuais. A imagem escolhida seria publicada na seção “Beaver Hunt” da revista e à “modelo” seria enviado um cheque no valor de cinquenta dólares.
Lajuan e Billy Wood residiam na recôndita cidade de Bryan no Texas, Estados Unidos da América. Gostavam de passeios pelo campo e da vivência anónima e pacata que a vida do Sul lhes proporcionava.
Um certo dia, enquanto caminhavam pelos trilhos desertos do Texas, o casal refugiou-se do calor de verão nas águas de um rio e ao saírem atrevidamente nus da água decidiram, por brincadeira, fazer uma sessão fotográfica. O conjunto de imagens mostrando mais do que os vários ângulos da nudez da senhora Wood destinava-se a ser um registo obsoleto de um desvaneio de verão, esquecido no fundo de uma gaveta, mas foi roubado por um vizinho que, falsificando a assinatura de Lajuan, as submeteu ao concurso “Beaver Hunt”.
Foi assim que, em fevereiro de 1980, Lajuan Wood foi surpreendida por uma fotografia sua na seção “Beaver Hunt”, que a mostrava sentada nua, num ramo de uma árvore e uma legenda com o texto: “Lajuan Wood, 22 anos é mãe e dona-de-casa em Bryan, Texas. Fantasia com uma orgia com motoqueiros.”
O processo Wood v. Hustler Magazine teve o desfecho expectável: a revista foi condenada a pagar uma indemnização no valor de 150.000$00, mas Lajuan Wood nunca recuperou da humilhação.
O caso representou o início do “revenge porn”, por ter sido a primeira vez que um conteúdo pornográfico foi difundido, num órgão de comunicação, sem o consentimento da pessoa fotografada.
O “Beaver Hunt” representou o corte da imprensa pornográfica norte-americana considerada mais explícita, lowbrow e sensacionalista com as produções fotográficas profissionais que até àquele momento dominavam o segmento e a abertura das páginas a conteúdos amadores produzidos pelos leitores.
O advento da tecnologia e a crescente facilidade de acesso a meios cada vez mais dissimuláveis para a recolha de imagens, fez disparar a pornografia amadora (“realcore porn”) e os casos de filmagens feitas sem o conhecimento dos visados.
Mas o conceito de “revenge porn”, associado à ideia da difusão não consentida de conteúdos pornográficos explícitos na Internet com o intuito de vingança, humilhação ou chantagem (sextortion), como hoje é conhecido, só se massificou com o “IsAnyoneUp?”, um site que permitia fazer o uploadde conteúdos pornográficos explícitos de forma anónima.
A desmaterialização dos suportes de registo de imagens associada à multiplicação dos meios de partilha de conteúdos e à impunidade online, tornaram o “IsAnyoneUp?” num instrumento de vingança, onde ex-namorados ciumentos partilhavam vídeos com conteúdo sexual explícito, que tinham feito, nem todos com o conhecimento das suas então namoradas. Os vídeos eram difundidos com a identificação das mulheres e um link para os seus perfis no Facebook.
Infelizmente a luta contra o “revenge porn” encontra inúmeros obstáculos, uns decorrentes do peso da vergonha que as vítimas carregam, outros da própria imaterialidade em que a Internet se desenvolve.
Portugal começou no início do mês de setembro o seu combate ao “revenge porn” com a entrada em vigor da Lei 44/2018, decorridos quase trinta anos do primeiro caso nacional, quando a “Semana Ilustrada” publicou fotogramas de um vídeo de cariz sexual explícito do arquiteto Tomás Taveira. Outros casos se seguiram e alguns deles, inclusivamente, conduziram desconhecidos ao estatuto de “figuras públicas”.
A nova lei vem, em primeiro lugar, agravar o crime de violência doméstica, uma vez que grande parte dos casos de “revenge porn” decorrem entre cônjuges ou ex-cônjuges como instrumento de violência psicológica ou até mesmo como meio de chantagem para evitar que a vítima abandone a relação.
A lei agrava ainda as penas aos crimes relacionados com a devassa da vida privada, devassa por meio de informática e a violação de correspondência ou de telecomunicações, procurando abranger os casos em que as novas tecnologias potenciam o alcance e a difusão dos conteúdos.
Infelizmente acordámos tarde para o combate ao “revenge porn” e estes primeiros passos, embora agravem a moldura penal dos crimes, pouco podem fazer relativamente ao manto de impunidade que esconde a Internet.
Associado Coordenador da DataProtection team da CCA ONTIER