“Um casal jovem que queira casar e comprar casa está a ser empurrado para a periferia por causa da especulação imobiliária”.

Não sei se as palavras eram exactamente estas, mas a ideia era. Para lançar o debate entre os ouvintes de uma rádio sobre a “taxa Robles”, o moderador tratou de colocar no cadafalso a especulação imobiliária que atira os jovens para os subúrbios. Isto para além das malfeitorias de quem arrenda quartos a estudantes por preços proibitivos.

É assim que, em Portugal, se começa um debate: virando a realidade do avesso, misturando tudo no mesmo saco e acrescentando-lhe ainda um toque sentimental. A seguir é difícil ser racional e equilibrado.

Os jovens não começaram a ser atirados para os subúrbios de Lisboa com a chamada “lei Cristas” que (finalmente) permitiu que voltasse a haver mercado de arrendamento urbano. Começaram a sair precisamente porque não havia mercado de arrendamento nem reabilitação urbana.

Acontece porém que eu tenho idade suficiente para saber que os jovens não começaram a ser atirados para os subúrbios de Lisboa com a chamada “lei Cristas” que (finalmente) permitiu que voltasse a haver mercado de arrendamento urbano. Não sendo tão antigo para ir até aos primórdios do congelamento das rendas – que tem, em Lisboa, um século de existência e nasceu ainda no tempo da I República –, sou suficientemente antigo para me recordar de uma cidade onde vivia muito mais gente e, sobretudo, muitos mais jovens do que hoje. E por me lembrar dessa cidade sei, até porque foi uma experiência vivida por muitos da minha geração, que a expulsão para as periferias é muito anterior à malvada da especulação imobiliária.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Basta olhar para os números dos Censos da População e comparar o que era a Lisboa de 1981 (com 808 mil habitantes) com a Lisboa do último censo, o de 2011, anterior à tal “lei Cristas”, altura em que já só viviam na capital 548 mil habitantes. Menos 260 mil. Sem surpresa, era também uma cidade muito mais envelhecida, pois tinha perdido 56% dos seus habitantes com menos de 15 anos e 48% dos que têm entre 15 e 30 anos. Só no escalão etário dos com mais de 60 anos é que Lisboa conservava, em 2011, sensivelmente o mesmo número de habitantes que tivera em 1981.

Isto significa que, nessas três décadas, a cidade capital perdeu um terço dos seus habitantes, mesmo tendo ganho muitos bairros novos, da Expo a Telheiras passando pela Alta de Lisboa ou pela urbanização do Restelo. Bairros onde, como todos sabem, sempre foi quase impossível encontrar uma casa para alugar – só mesmo para comprar.

Entretanto o casco antigo da cidade ia caindo de podre. Os velhos que o habitavam iam morrendo, os proprietários raramente tinham condições para fazer obras de reabilitação e os mais novos ainda mais raramente achavam chique vir viver para casas meio arruinadas.

Quando existe uma situação destas, de alta súbita do custo da habitação, a melhor solução é permitir que a oferta equilibre a procura para assim estabilizar os preços. E os poderes públicos podem ajudar a que isso aconteça.

Tudo isso começou a mudar há meia dúzia de anos com o impulso do turismo e o início do regresso do mercado de arrendamento possibilitado pela tal “lei Cristas”. Os bairros podres de Lisboa começaram a deixar de estar podres e voltaram a estar na moda. Só que entretanto também surgira a realidade do alojamento local e, se o dinheiro dos turistas (e de investidores internacionais) permitiu um ritmo de reabilitação urbana que nem os mais optimistas julgaram alguma vez possível, a verdade é que mesmo assim a procura fez disparar os preços. Fizeram-se alguns grandes negócios – o próprio António Costa fez um na Rua do Sol ao Rato, o agora famoso Ricardo Robles não chegou a fazer o seu em Alfama.

Quando existe uma situação destas a melhor solução é permitir que a oferta equilibre a procura para estabilizar os preços. Os poderes públicos podem ajudar a que isso aconteça de forma directa – colocando eles mesmos habitações no mercado, tarefa em que têm sido sobejamente ineficientes – ou de forma indirecta – facilitando o licenciamento e o investimento privado, no fundo não atrapalhando quem quer apostar no crescimento e no futuro do país.

Infelizmente as Mortáguas e as Catarinas desta terra sabem que Portugal continua a ser o da última estrofe dos Lusíadas, um país onde a inveja vale mais do que o exemplo. Vai daí saíram-se primeiro com o famoso “imposto Mortágua” que, se bem que mitigado” foi por diante: para elas o mal está mesmo em haver ricos, nunca esteve em existirem pobres. Agora, que necessitavam de qualquer coisa vistosa para mostrarem ao povo como ideia sua na elaboração do Orçamento, inventaram a “taxa Robles”.

Infelizmente as Mortáguas e as Catarinas desta terra sabem que Portugal continua a ser o da última estrofe dos Lusíadas, um país onde a inveja vale mais do que o exemplo.

Tudo está mal na ideia, a começar por pensar que um imposto que, nas condições actuais, já pode chegar praticamente aos 50%, ainda pode subir mais. Quando se chega a estes valores demenciais ou o dinheiro se vai embora (como aconteceu em França, lembram-se?) ou o preço ainda aumenta mais para compensar o que se perde para o Estado.

Depois, se eventualmente estivermos perante uma “falha de mercado” que faz inflacionar os preços, o pior remédio será sempre acrescentar taxas e taxinhas discricionárias, pois isso só acentuará as distorções já existentes, criando sempre efeitos perversos imprevisíveis.

Por fim é difícil imaginar regras objectivas para a aplicação de uma tal taxa – tão difícil como seria ter criado o fenecido “IMI das vistas”. Um bom exemplo de como a ideia propícia o disparate, e o disparate ainda maior, foi ver como reagiu o líder do PSD, Rui Rio: “Efetivamente, uma coisa é comprarmos e mantermos durante ‘x’ tempo e outra coisa é andarmos a comprar e a vender todos os dias só para gerar uma mais-valia meramente artificial”.

Mas em que mundo viverá este senhor? De facto as famílias não gostam de mudar de casa todos os anos, mas quem vive do mercado imobiliário vive de comprar e vender casas o mais depressa possível. Nisso não é diferente de um comerciante de bananas ou hortaliças. É um negócio onde às vezes se ganha muito, mas onde também se pode perder muito (se têm dúvidas olhem para o que os bancos perderam nesta área), pelo que se queremos continuar a ter investimento e, com investimento, a ter mais oferta que faça baixar o preço final das habitações, então temos de ter regras estáveis e não acrescentar riscos políticos a um negócio que já por si tem muito risco.

Rui Rio, não lhe ficando bem vituperar os empresários como fazem as Catarinas e as Mortáguas, faz malabarismos para mostrar que é um político tão diferente, tão diferente, que até é capaz de dar uma mão aos seus disparates.

É contudo deste tipo de massa que se faz o populismo – Mariana Mortágua, ao mesmo tempo que se deixa fotografar pelo Expresso com uma caríssima caneta Mont Blanc entre os dedos, vitupera os ricos; Rui Rio, não lhe ficando bem vituperar os empresários, faz malabarismos para mostrar que é um político tão diferente, tão diferente, que até ultrapassa António Costa pela esquerda. E este, naturalmente, sorri com a irresponsabilidade alheia, pois sabe muito bem que o “seu” crescimento e o “seu” emprego são filhos do boom turístico e imobiliário e só um suicida matava a galinha dos ovos de ouro em ano de eleições. É por isso de resto que tem protegido a “lei Cristas” dos ataques mais descabelados da geringonça, ao mesmo tempo que não perde uma oportunidade para também ele ser populista e chamar-lhe “lei dos despejos”.

A nossa desgraça é que muito disto é feito sem o necessário escrutínio e sem que se pare um minuto para pensar – e por isso mesmo regresso ao lancinante lançamento do debate radiofónico que pude seguir. É que nele, recordo, também se chorava a subida do preço dos quartos para os estudantes que vêm estudar para Lisboa e para o Porto falando apenas de especulação (neste caso especulação de pobrezinhos, pois estamos a falar sobretudo de subalugueres de partes de casa).

Contudo, se pensarmos um bocadinho, este é de novo um mercado que sofreu uma alteração radical nos últimos anos com a chegada de um número crescente de estudantes estrangeiros, sobretudo por via do programa Erasmus. Em Lisboa estima-se que mais de 10% dos estudantes universitários já sejam estrangeiros, enquanto no país todo, em 2015/16, já se contabilizavam mais de 33 mil estudantes estrangeiros. Vindo boa parte deles de países com mais poder de compra, que esperavam os nossos Dom Quixotes da especulação imobiliária? Que os preços baixassem?

Haja bom senso. Procure-se melhorar a oferta. Pegue o Estado no património que tem abandonado e coloque-o no mercado a preços controlados. E sobretudo pense-se antes de se falar – evita muito dislate e até é um serviço público.

Siga José Manuel Fernandes no Facebook, no Twitter e no Instagram