Reparei que muitos que se identificam como Católicos se acanham sempre que o assunto vem ao de cima. Arrastam os pés e olham para os sapatos como se fosse possível poli-los ainda mais com os olhos. A que me refiro? Ao filho ter revelado a sua pansexualidade? Identificar-se com o sexagésimo nono género? Não. Algo muito mais desafiante. Enfrentar a questão do aborto e da eutanásia do lado pró-vida, entre círculos de amigos, colegas de trabalho e, principalmente, os mais académicos de entre eles. No bingo da inclusividade que brotou das universidades nos últimos vinte anos, nunca sobra espaço para o quadradinho pró-vida. Celebramos toda e qualquer diversidade, real ou imaginada. Tudo parece ser respeitado menos a valorização intrínseca da Vida. Culturalmente criou-se uma redoma ao mero desafiar do aborto e eutanásia como debates finados.
Estive em minoria nas infrequentes vezes em que se discutiu o aborto e a eutanásia nos centros académicos que frequentei. As poucas tentativas de defender a posição pró-vida a que assisti ou nas quais tomei parte não correram particularmente bem. Os insultos recebidos fariam Manuel Bocage corar. Geralmente envolvem acusações de ignorância, reduzida habilidade mental, fetiche com embriões. Infelizmente logo que se menciona a concepção como início da vida, o argumento muda para a viabilidade do embrião. Progressivamente se vai esticando o argumento, ao ponto de agora ser apenas uma decisão sobre o próprio corpo, e não sobre um novo ser humano. E já se sussurra nos corredores que podemos prever as características do embrião; e se não forem desejáveis, abortamos então? Não me parece uma atitude saudável. Quando o elemento essencial, a Vida, pode ser descartado, começa a perder-se a racionalidade das decisões.
Culturalmente, incutiu-se nas mulheres o medo da gravidez em si, como se ter filhos fosse apenas uma tarefa imposta pelo tal Patriarcado. Como se não fosse uma felicidade imensa constituir família, ver filhos crescer. Promovem-se relações efêmeras, com o mínimo de responsabilidade. Não se constroem relações de longo termo, onde da amizade emerge o amor e onde dois melhores amigos se apoiam e edificam a sua família. O medo da dor temporária gerou decisões que poderiam ter trazido tanta felicidade ao mundo. A hipersexualização e a incontinência emocional abundantemente presente no entretenimento moderno certamente não ajudou.
Adicionalmente, retirou-se o pai da decisão sobre o destino da sua descendência. Se um casal conceber um filho consensualmente, e a mulher decidir abortar, o pai fica sem poder proteger o filho. O tal “o meu corpo, a minha escolha”. Pois não é o corpo do pai que terá que trabalhar dezoito anos e alguns meses para abrigar e alimentar os filhos, se estes nascerem? Pode o pai assim decidir que se aborte o feto, mesmo querendo a mãe levar a gravidez a termo? Ou será que deveríamos olhar para o aborto como uma questão de natureza muito mais delicada, em que está em jogo uma vida, e não uma coisa? Parece-me mais sensato. A minha posição não vem de um fetiche por embriões, vem do simples facto de que a Vida começa na concepção. Logo, qualquer decisão tem que ter em conta esse facto. E a eutanásia/morte assistida?
No Canadá, a lei da eutanásia permite que se aplique morte assistida em condições não terminais e brevemente poderá incluir pessoas com doenças mentais. Estar deprimido pode tornar-se em breve razão para acabar com uma vida! O que nos traz ao problema do suicídio. Que deveria ter dito a uma amiga que nos deixou há mais de seis anos por suicídio ? “A ponte fica para a esquerda.”? Penso que ninguém acharia aceitável responder dessa maneira. Deveria fazer tudo o que pudesse, se soubesse o que estava a acontecer, para que não se magoasse, lembrar-lhe que a sua vida fazia toda a diferença na minha, e na de muitas outras pessoas. Nada a substitui. Ninguém é descartável. E no entanto, na direção para a qual caminhamos, a dor imensa porque estava a passar poderia ser rectificada como motivo de morte assistida. A contradição essencial da descartabilidade da vida é a de que na sua lógica justifica o suicídio de quem nos é querido.
Percebo que existem situações de grande sofrimento terminal. Mas também aí, há que lembrar que os cuidados paliativos estão cada vez melhor. E investir em tratamentos e cuidados médicos parece-me mais adequado. De notar também que mesmo havendo a necessidade de mais do que um profissional de saúde envolvido na decisão de conceder a eutanásia/morte medicamente assistida e a existência de períodos de reflexão e avaliação de consentimento por parte do paciente, cada vez mais permissividade nos requerimentos arrisca abusos e manipulações. Este descuido com a positividade da existência, a Vida em si, nota-se. Nota-se o quão descartáveis ficamos no mundo do trabalho, nas amizades, nas próprias famílias. Nota-se pela palpável realidade do ser substituível. A defesa da vida enobrece todo o ser humano e revela o quão único cada um é , e o valor intrínseco que tem.
Avançamos sem freios nem contrapesos em direção ao Nada. Parem os relógios, silenciem-se os telemóveis, cale-se o cão com um osso sumarento, pois a Vida, morreu . Cada vez mais nodos redundantes num sistema maior, amedrontados pelo risco, passamos vidas ambulantes, sem raízes emocionais, sem ter verdadeiramente vivido. Um declínio gerido, desprovido de felicidade. Em Portugal também pouco oiço a voz pró-vida. Tem que haver alguma sensibilização em relação à intocabilidade do aborto e da eutanásia como debates decididos, alguém que puxe por uma sociedade que valoriza o existir em si. Sei que existem situações extremas, como os casos de violação, onde muitos são tentados a abortar. Para evitar que esse crime horroroso aconteça e se repita, que se legisle punições mais severas para a violação e/ou a sua tentativa. E que haja abundante apoio à mulher ou ao casal, se o pior acontecer, para que a criança viva. Precisamos de sociedades onde haja um elevado grau de confiança e se reduzam as probabilidades de estes crimes terríveis acontecerem.
Sempre que me é pedido conselho sou pró-vida. Alguém tem que balançar o culto de morte que se tornou a discussão destes assuntos. Espero assim desafiar a leviandade com que o aborto, a eutanásia e o próprio valor individual de cada um são tidos em conta e discutidos. Preocupa-me a direção para onde caminhamos. Parece-me uma posição razoável e nada ignorante. Que possamos construir sociedades baseadas na Família e comunidades fortes, para que estas decisões difíceis nunca tenham que ser feitas. Tempo de levantar os olhos e encetar conversas difíceis e complexas. Aproveitem o tempo de Natal para refletir; vejam outra vez, ou pela primeira vez “Do Céu Caiu Uma Estrela” (It’s a Wonderful Life). Deixo-vos com uma citação de Tolkien “Muitos dos que vivem merecem a morte. E alguns que morrem merecem a vida. Podes dar-lha? Então não sejas tão ansioso por entregá-la em juízo.”