Podemos sentir que a principal razão de grande parte da massa popular portuguesa suspirar de louvor e orgulho quando se fala de Salgueiro Maia se deva directamente aos seus actos de valentia e coragem nos acontecimentos que lavraram no dia 25 de Abril de 1974 e puseram fim a 48 anos de ditadura torcionária. A tomada do Terreiro do Paço sob ameaça de fogo de uma fragata, a tentativa de negociação com um brigadeiro que ordena que se abra fogo sobre Salgueiro Maia quando este se encontra desarmado em terreno neutro, para dialogar, na Ribeira das Naus, situação onde todos os soldados se recusaram a abrir fogo e passaram para o lado da revolução, todo o processo de cerco ao Quartel do Carmo onde encurralou o governo e mediou a rendição do mesmo. Porém, embora os actos de coragem empreguem o seu devido peso na memória colectiva dos portugueses, há algo mais, algo maior que nós próprios que nos faz sentir um desmedido sentimento de inspiração e ternura quando se fala de Salgueiro Maia.
Salgueiro Maia transformou-se involuntariamente na personagem central de uma daquelas histórias que contam a história de alguém que todos queremos e ambicionamos ser, a história de uma pessoa que surge discreta e involuntariamente das circunstâncias e leva a cabo o acto sublime digno do herói. A história de Salgueiro Maia é a romântica história de como o homem ideal age quando confrontado com a, por vezes, brutal, impiedosa e malévola natureza do mundo.
Maia é um homem que conhece o sofrimento, um homem que testemunhou em criança a trágica morte da jovem mãe à sua frente, vítima de um atropelamento, um homem que viveu o vazio da orfandade, um homem que testemunhou os horrores e as injustiças da guerra do Ultramar, mas que nunca deixou que as suas tragédias pessoais se transformassem em ódios e ressentimentos irreflectidos. O seu sofrimento ajudou-o a entender o sofrimento do próximo, a confrontação com a injustiça moldou o seu sentimento de justiça, o testemunho dos horrores ajudou-o a entender que mundo desejaria deixar para os seus filhos.
O acto inicial de Salgueiro Maia na madrugada do dia 24 de Abril de 1974 presenteia-nos com o que sucede a um líder que conduz a sua vida com honra e integridade. Maia manda formar a sua companhia na parada do quartel da Escola Prática de Cavalaria de Santarém e profere um discurso épico onde usa a célebre expressão: “Como sabem, existem vários tipos de Estado. Os Estados socialistas, os Estados capitalistas, e o estado a que chegámos. Nós vamos marchar até Lisboa para pôr fim ao estado a que chegámos. Quem quiser ficar pode abandonar a parada e recolher à caserna. Quem quiser vir dê um passo em frente”. Toda a companhia deu, de imediato, um passo em frente.
Salgueiro Maia, na antecipação de uma batalha, recebeu dos seus homens uma prova iniludível de total e absoluta confiança e reverência, como um verdadeiro e legítimo líder, que alcançou a sua posição pela competência, não como um mero técnico que dá ordens e faz imposições longe do perigo. Maia conhecia as regras do jogo, e liderava a sua coluna de homens rumo à sua missão. Era o arquétipo de um cavalheiro, e sabia que o cavalheirismo não poderia nunca estar dissociado da honra e da coragem. Um cavalheiro que sabia distinguir a diferença fundamental entre derrubar um inimigo pela força e pela fúria, ao mesmo tempo que conseguia conter esses sentimentos quando estes deixam de ser necessários à vitória, em respeito pela pessoa humana.
No dia 25 de Abril, Salgueiro Maia torna-se no herói involuntário por via das circunstâncias, estava incumbido de ocupar apenas o Terreiro do Paço quando, no imprevisível desenrolar dos acontecimentos, se vê forçado a rumar ao Largo do Carmo para encurralar o governo, onde, de megafone em punho, liderou o cerco ao Quartel do Carmo num largo lotado com milhares de civis que o apoiavam com palavras de ordem. Depois de várias horas de impasse, Maia toma o quartel e coordena a rendição do governo e a passagem do poder para as mãos do General Spínola. O regime caiu, a missão estava cumprida.
Salgueiro Maia era apenas uma peça de uma maior engrenagem que organizou e mobilizou a revolução do 25 de Abril, no entanto, foi quem mais destaque teve nesse dia, por sorte, coragem e competência. O seu nome confundia-se com a liberdade que todos sentiam pela primeira vez em 48 anos. Poderia ter feito uso e abuso do protagonismo ganho nesse dia, podia ter feito uma carreira política brilhante, podia ter solicitado diversos tipos de cargos, mas não. Recusou o convite para ser membro do Conselho da Revolução, recusou o convite para ser adido militar numa embaixada à sua escolha, recusou o convite para ser Governador Civil de Santarém, assim como recusou o convite para pertencer à Casa Militar da Presidência da República.
Quanto mais olhávamos para a postura tomada por Salgueiro Maia mais percebiamos que este tomava decisões honradas porque ele próprio vivia sob os valores da honra. Não queria estar no campo de batalha político entre contendas e enfrentamentos. Para si, o grande enfrentamento para que se sentia destinado foi o que levou a cabo naquela madrugada de Abril, porque acreditava num ideal maior que si próprio, que queria oferecer incondicionalmente aos portugueses, a liberdade. Pela via militar fez o seu voto de sacrifício por esse ideal. As suas acções são determinadas pelo sentido de dever ao seu ideal, deixando que tudo o resto caia em detrimento do mesmo. Não está interessado em persuadir o mundo a aceitar as suas preferências, sacrifica o presente em função daquilo que está certo, deixando que as futuras consequências se desenrolem, com a esperança inabalável de que o futuro possa ser o melhor possível para o bem comum, abraçando e sacrificando-se às contingências da abnegação. Acredita que é neste tipo de líder que se personifica a razão de existir nesta vida. Qualquer um se inspira neste exemplo de líder, qualquer um quer ser este exemplo de líder, qualquer um segue para qualquer batalha este tipo de líder.
Todavia, Salgueiro Maia, nunca sendo esquecido pelo povo que libertou, pagou o preço da sua abnegação,pois o poder caiu, em alguns momentos, nas mãos de personagens que viviam ressentidos com os seus actos de coragem, fosse por inveja, fosse por afinidade com o anterior regime, ou por puro sentimento de emasculação perante um verdadeiro herói. Diversos poderes civis e militares garantiram o seu afastamento das hierarquias militares e dos benefícios da carreira, o seu ofício, a sua missão de vida, tentando abater a sua moral e fazer cair o seu nome no esquecimento e na irrelevância, demonstrando que nas estruturas de poder não há lugar para anti-heróis honrados, estes ofuscam os sedentos e os ambiciosos, as massas seguem-nos como líderes naturais, e ignoram os líderes artificiais, são um perigo para os organigramas, a mínima palavra de um Maia pode deitar abaixo um líder artificial, e estes sabiam-no. Como na história bíblica de Abel e Caím, quando Caím se apercebe que Deus rejeita as suas ofertas, em vez de assumir as suas responsabilidades, em vez de se culpar a si mesmo, culpa tudo à sua volta, culpa Deus e culpa Abel, seu irmão, que é visto como o arquétipo de tudo o que Caím não é, e, como tal, põe fim à vida do próprio irmão, na esperança de se tornar tão compreendido e amado como ele, o que nunca virá a acontecer. É por isso que todos sabemos quem foi Salgueiro Maia, e não sabemos quem foram os demais, que ficarão para a história como ilustres desconhecidos ou meros técnicos que cumpriram apenas discretamente as suas funções.
Salgueiro Maia foi o homem que, aos 29 anos, mudou o rosto a um país e deu a liberdade a um povo sem pedir nada em troca. 29 anos, a idade que hoje tenho quando escrevo estas palavras, eu, que nasci precisamente 7 meses após o seu desaparecimento, que não vivi a sua revolução nem presenciei os seus feitos, mas sou fruto da memória colectiva de um povo que não esquece quem lhe fez incondicionalmente bem e que, ainda hoje, 30 anos após a sua morte prematura às mãos de uma doença inclemente e 48 anos após o 25 de Abril, relembra a memória do herói que nos permite ser livres, como sempre lutámos por ser desde 1143.
Todos aqueles que o tentaram condenar ao esquecimento se desvanecem nas entrelinhas da história, perdendo tudo o que mais desejavam, o seu nome relembrado. Salgueiro Maia perdurará na memória colectiva dos portugueses sem nunca o ter desejado, mas tendo-o sempre merecido. Faz hoje tanto ou mais sentido relembrar a luta pela liberdade, num tempo histórico onde esta se encontra sob cerco de potências que a abominam e forças políticas que a subvertem, ao mesmo tempo que tentam demonizar e diminuir os que por ela morrem.
Salgueiro Maia, pediu para ser sepultado em Castelo de Vide, terra onde nasceu, no coração do Alentejo, pediu também que lhe dessem uma campa rasa, despojada de brilhos e grandiloquências, numa prova óbvia da noção que tinha da sua finitude e da sua pequenez de mais um homem que palmilhou esta terra, desatendendo totalmente à grandiosidade que o seu povo lhe atribuía. Grandiosidade de quem, pela honra, coragem e integridade, entregou incondicionalmente a liberdade a um povo.
No epitáfio da sua lápide jaz:
“Ao Tenente-Coronel Salgueiro Maia.
Conquistador do sonho inconquistado.
Havia em ti o herói que não se integra”
Na memória colectiva do povo português, a esse epitáfio acrescenta-se: “Um soldado da liberdade da Pátria, honremo-lo”.