Interessam-me os Santos, todos. Em cada um eu vejo uma dimensão da minha humanidade, como a fazerem-me dizer: “é isto que eu quero”! Eles são para mim a demonstração da possibilidade do Cristianismo. Refiro-me não só àqueles com quem me cruzo no meu quotidiano, mas em particular aos da Tradição a que pertenço, porque é a que me desafia e me educa de forma total, não pondo, ao contrário de outras tradições, nada de lado do que muito importa às nossas vidas, em especial o sofrimento e a morte. Não me interessa uma tradição que ignora ou torneia o sofrimento, nem a que acentua a lei moral, mandamento desencarnado (como o Budismo ou o Judaísmo). Ambas incitam à prática de um ascetismo ou voluntarismo em rigor inútil, incapaz ao primeiro desaire da adequação entre o ideal e o real, esticando ao limite a força de vontade que assim acaba por se quebrar.
O Cristianismo é, dentre estes ideais, o único que nenhuma das dimensões da vida esquece. E porquê? O que tem afinal o Cristianismo de extraordinário? É simples mas imponente como um troco de árvore que irrompe no meu caminho.
Às perguntas sobre o sentido da existência, do sofrimento e da morte, o Cristianismo não se oferece como um discurso, mensagem ou tábua de leis, mas é o próprio Deus a oferecer-Se aos homens; não é apenas um ideal ou uma ideia. O Cristianismo é um facto, Deus incarnou, morreu e ressuscitou. Um Homem em tudo igual a nós, excepto no mal, o pecado, que é , numa palavra, a voz do desespero, que se cansa e desiste de amar.
É com este amor que vivo o feriado que passou, dia de todos os santos, fazendo ius a um dia que faz todo o sentido no significado que tem hoje, nestes dias em que muitos são aqueles que dão ou perdem a vida em conflitos que, como alguém o reconheceu e bem, configuram uma terceira guerra mundial aos bocadinhos. Já alguém escreveu sobre Os Santos Inocentes, Péguy, uma poesia a re-ler, a pôr o dedo nesta ferida. E lembro aqui a matança de Herodes, agora que o Natal já aí está a chegar. Viramos a cabeça para o lado, ao terror desses gritos daquelas mães loucas de dor. Hoje são outras as matanças… Mas não estou aqui para comparar matanças ou carrascos, muito menos para julgar seja quem for. Não tenho tempo a perder em contas impotentes, e, sim, constato e identifico aquelas em que participo, por muito que me custe admitir ser capaz de tais ou mais pequenas atrocidades.
Os santos da minha vida foram exemplares neste particular do sofrimento e da morte, não só na vivência das mortificações quotidianas que são a sua oferta real ao Senhor da sua, e minha, Vida, mas em muitos deles nos seus fins de vida, alguns testemunhando com o seu sangue Aquele que também a deu por todos e cada um de nós homens, de todas as raças e nações, todas, todas, todas.
Interessa-me S. Inácio de Loyola. Não teve como eu um AVC mas foi ferido em batalha numa perna, o que o obrigou a ficar imóvel numa cama, e acabou, como eu, por encontrar o Senhor por quem vale a pena lutar. Ao querer aproveitar da melhor forma esse tempo “perdido”, pediu ao seu lacaio de quarto que lhe trouxesse livros de aventuras de cavalaria mas ele nada encontrou desse género e trouxe-lhe apenas os únicos dois que estavam naquele castelo, A Vida de Nosso Senhor Jesus Cristo e a Vida dos Santos, que Inácio inicialmente afastou por falta de interesse em livros devotos. Mas devido ao tédio e à falta de melhor, pegou naquilo que não teria escolhido. O interesse foi crescendo e foi reflectindo sobre o sentido da sua vida, até aí de altas cavalarias, ele que filho de nobre bem fora. Como princípio de vida decidiu nada antepor a Cristo (e aqui imita S. Bento que baseia neste princípio a sua ordem que permitiu à Europa tornar-se vigilante…), dando-se a sua conversão, o que aliás é característico de todos os santos. São homens reais, como eu, não heróis ou gente extraordinária, que a um certo ponto da sua vida “caiem do cavalo”, como se diz de S. Paulo, e encontram em si um coração mudado (cor-versão) e se passam a focar no essencial.
Santo Agostinho, e recuo cerca de 10 séculos, interessa-me pela descoberta que faz de si, ao deixar uma vida fora de si , alienada, carregada de desamor e de uma procura da verdade em filosofias acéfalas, que nada eram senão vaidades. Num magnífico passo das suas Confissões reconhece diante dos homens, e dirigindo-se a Deus ( que é este o estilo desse livro que nos deixou), grita- Lhe, com pesar, do fundo de si: “Tarde Te amei Beleza tão rara e tão pura, tarde Te amei! Estavas em mim e eu estava lá fora a procurar-Te…e, por fim, ardi no desejo da Tua paz!”. Interessam-me as suas descrições da potência da memória, os seus vastos palácios onde me encontro ao encontrar Aquele que me faz em cada instante.
E ao lado do fundador da Companhia de Jesus, Inácio, e de um dos dois teólogos-chave de todos os tempos, Agostinho ( o outro é Tomás que deixo para outro dia ), vêm dois franciscanos, Francisco, o fundador dessa ordem, e António, o santo mais popular de todos os tempos.
S. Francisco interessa-me pela sua radicalidade, humildade e obediência à Igreja. Santo António interessa-me pela sua pobreza e foco no essencial. Seguindo a orientação do seu irmão superior, S. Francisco, ele sabe que as suas pregações (e são muitos e belos os seus sermões) de nada valem sem o essencial, que é vida de oração.
E duas mulheres me interessam pela sua determinação na busca da verdade. Uma é Teresa de Ávila enquanto grande mística, e, com o grande S. João da Cruz, reformadora da espiritualidade carmelita, dois apaixonados da Verdade. A outra, Edith Stein, é já do século XX, foi uma filósofa discípula de Husserl que ao ler um livro daquela Teresa percebe que ali se encontra a Verdade que procurava enquanto filósofa, e converte-se ao Cristianismo. Decide entrar no Carmelo, com nome de Teresa Benedita da Cruz, de onde é levada para Auschwitz-Birkenau para ser envenenada numa câmara de gás.
E no rol das Teresas vem a de Calcutá que me interessa pela clarificação do que a vocação significa de mudança de planos. Era já freira quando se converte aos pobres de Calcutá vendo neles Cristo. Mais do que sede de água, ela ama os pobres a ponto de neles reconhecer outra sede, sede de Deus, e passa a viver nessas ruas, amando-os totalmente. Sem meios, confia na Providência, acudindo com confiança os que encontra cada dia. Estar próxima deles é a sua vocação. Assim aconteceu também com Charles de Foucauld que entendeu que a forma de amar o povo que encontrou na Argélia, os tuaregues, era mudar-se para junto deles, viver com eles, aprender a sua língua (ao ponto de ter feito um dicionário), celebrar a missa para eles, enfim tudo com eles. Acaba por ser assassinado nessas terras para onde em jovem, deixando o Exército, partiu em busca do fundo da sua conversão ainda em Paris.
E S. João Paulo II é o santo da minha juventude. Ele que no princípio do seu Pontificado escreve a encíclica O Redentor do Homem, e dela fez o seu programa cujo centro é Cristo. Foi o Papa que inventou as JMJ e a quem Nossa Senhora de Fátima salvou de mortal atentado, como ele próprio reconheceu e fez saber, tendo vindo várias vezes a Fátima para agradecer, numa das vezes trazendo nas mãos a bala mortífera que hoje se pode encontrar na coroa que a Senhora usa em dias especiais.
É o papa polaco que proclama doutora da Igreja a minha santa de eleição, mais uma Teresa, Teresinha de Jesus. Gosto dela porque me ensina o Pequeno Caminho para chegar ao Céu. É o caminho da CONFIANÇA. É ter a razoabilidade da criança que naturalmente se entrega nos braços do Pai. Eu posso fazer reflectidamente esse caminho. Eu que tive um pai cheio de limites como eu, mas porque me amava tanto eu nele intui uma paternidade atrativa, só ultrapassada pelo outro Pai que me ensinavam estar no Céu. Também ele e eu demos muitos passeios, tal como Teresa e o seu pai.
Teresa ensinou-me que a criança fala verdade quando diz “eu quero tudo”. Teresa não quer uma vida a meias. E, aliás, é com este seu Tudo ou nada que Teresa apresenta muito bem o que todos os santos têm em comum. Ela diz que não se sente atraída por nenhuma vocação em especial, mas que se sente atraída por todas, ao ponto de dizer “a minha vocação é o amor”, porque o amor está na fonte de todas as vocações. Não é por acaso que S. João diz que “Deus é Amor”. O nosso Fernando Pessoa não terá conhecido os “desejos infinitos” de Teresinha, como ela diz, mes désirs infinits, mas são feitos do mesmo tecido do seu, se se trata de querer, eu quero o infinito!