Devo confessar a minha surpresa pela fotogaleria de 17 de Abril, com as empresas cujos produtos não são testados em animais. Pretendendo aumentar a sua quota num mercado bilionário, tais empresas inventaram a designação de “cruelty-free”, que o Observador compra com laivos de autosatisfação do dever cumprido, sem sequer distinguir, como deveria, o que é experimentação animal séria do que é “cruelty”.

O Observador devia saber que existem, desde há décadas, organismos que velam, justamente, pelo bem estar dos animais experimentais e que todos os experimentadores europeus estão necessariamente sujeitos à sua supervisão. As boas práticas neste domínio estão asseguradas a três níveis de controlo: desde logo os biotérios, mas também os investigadores, têm obrigatoriamente de estar certificados, após cursos de formação e prática comprovada (por vezes longa); mais, todos os projectos específicos de investigação científica na Europa exigem aprovação por tais organismos (a DGAV, em Portugal) e por comissões de ética independentes. Mais ainda, instituições e investigadores aplicam à experimentação animal o princípio dos “3 Rs” (“reduction, refinement, replacement”) proposto em 1959, existindo até incentivos financeiros neste sentido.

Tudo isto porque, como o Observador poderia ter sugerido, a experimentação animal é necessária, não só para todos os novos medicamentos, mas ainda, parece-me, para todos os novos produtos para uso humano. As tais empresas “cruelty-free” de que o Observador faz propaganda só têm três alternativas, todas más para o consumidor: (1) a mais simples é, naturalmente, de não produzir nada de novo e vender, com outros nomes ou misturas, o que sempre se usou (e se sabe não fazer mal à maioria das pessoas); (2) vender produtos que nunca foram testados para eventuais malefícios para a saúde; (3) vender produtos que foram directamente testados em “voluntários” humanos que são pagos para fazerem eles próprios de “cobaias”. O meu obrigado ao Observador por nos informar sobre os produtos que não devemos comprar, se não queremos arriscar eventuais irritações de pele ou de intestino.

Esta é uma das várias tendências de raiz irracional que avançam nas nossas sociedades urbanas e pós-modernas. Outra é a recusa dos pais em vacinar os filhos. Com o surto de sarampo que grassa por estes dias em Portugal, temos assistido a discussões intermináveis sobre a pertinência e constitucionalidade de obrigar os pais a vacinar os filhos. Por um lado, tais senhoras e senhores põem em risco as vidas dos seus filhos e as dos filhos dos outros, particularmente em países onde a escolarização é obrigatória, proporcionando assim as condições ideais para contágio epidémico. Por outro lado, não podemos, diz-se, legislar contra as livres escolhas individuais (como se não fosse obrigatório, por exemplo, usar cinto de segurança nos automóveis ou capacete nas motos). Ora, o assunto não é novo em outros países e já existe jurisprudência. Vários tribunais federais americanos encontraram, a meu ver, a solução “salomónica”: os pais são livres de vacinar ou não os seus filhos, mas estes não entram nas escolas se não forem vacinados. Pelo que sei, o caso até já está resolvido em Portugal: (1) a escolaridade é obrigatória e (2) a inscrição nas escolas exige um certificado de vacinas em ordem. Voilà.

O que de facto preocupa é o avanço da irracionalidade, do qual os fundamentalismos mais ou menos religiosos e nacionalistas (e crimes associados) são apenas um sintoma. Sabendo que devemos sobretudo às vacinas o facto da esperança de vida à nascença ter quase duplicado no Século XX, pergunto-me onde estaríamos hoje se a racionalidade nascida do “enlightenment” não tivesse sido suficientemente forte para resistir ao movimento romântico, que os anti-vacinas e outros “cruelty-free” tentam reviver.

Imunologista, dirigiu o Instituto Gulbenkian de Ciência de 1998 a 2012

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