UM MILHÃO E 600 MIL, eis o número de utentes em Portugal sem médico de família atribuído e a pressão tende a ser maior uma vez que há cada vez mais pessoas a chegar ao sistema público de saúde. O número de inscritos voltou a subir em abril, invertendo a tendência dos últimos meses.

Confrontarmo-nos com a dimensão estatística do problema é uma pequena parte da “dor brutal” que sentem os portugueses privados de um recurso, sendo que é acima de tudo um direito fundamental, sobretudo daqueles que não dispõem de condições para procurar alternativas no setor privado.

O problema, que é apenas a ponta do iceberg que designamos por “Serviço Nacional de Saúde” (SNS), afeta de forma impiedosa os mais frágeis da nossa sociedade, em particular os idosos e os membros de condição social mais vulnerável das nossas comunidades. E são muitos, sobretudo num tempo em que cerca de 2 milhões de portugueses vivem no limiar da pobreza, segundo um estudo do Instituto Nacional de Estatística publicado no último trimestre de 2023.

A situação é preocupante, uma vez que nos Cuidados de Saúde Primários os médicos de clínica geral/família são os responsáveis no SNS pelo acompanhamento dos utentes ao nível dos cuidados primários e pela sua referenciação para consultas de especialidade ou para a realização de meios complementares de diagnóstico e terapêutica.

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Ora, se o acesso a estes cuidados está privado a 1,6 milhões de portugueses, imaginemos o impacto desta desigualdade na saúde das populações mais vulneráveis, privando-as de uma vigilância regular de saúde (de extrema importância pelo seu caráter preventivo – veja-se o caso dos cancros da mama, do colon ou da próstata) e do acesso a cuidados de saúde especializados.

Esta desigualdade no acesso aos cuidados de saúde primários, consequência da ausência de médico de família, evidencia que, de acordo com o nível socioeconómico da pessoa, em idêntico nível de necessidade clínica, a utilização das consultas de especialidade favorece os grupos de maior rendimento pela procura de resposta no setor privado.

É verdade que, também em matéria de prestação de cuidados de saúde, o País não é todo igual. Por um lado, porque há territórios onde eles têm maior expressão pela ausência de recursos médicos, por mais básicos que sejam, nomeadamente os Cuidados Primários de Saúde tão propagados como a porta de entrada do SNS.  Encontramos disparidades entre municípios da Área Metropolitana de Lisboa e se compararmos o litoral com o interior então a expressão da desigualdade é avassaladora, mas o sentimento que há por todo o lado, e que os números confirmam, é que estamos muito longe de darmos resposta global aos problemas concretos das pessoas.

A situação é grave porque afeta o primado da nossa vida, estrutural porque adensa-se ao longo dos últimos anos sem que sejam geradas soluções e injusta porque diferencia o valor da vida consoante o rendimento que cada um aufere e que contribui para o reforço perverso do ciclo de pobreza.

Uma comunidade que não cuida é uma comunidade que gera desequilíbrios e contribui para a quebra de laços de coesão social.

Deixem-me ser claro, na procura da equidade dos cuidados de saúde no sistema português os médicos contam quase tudo, mas há nós que podem ser desatados na sua organização, que simplifiquem os atos administrativos e que facilitem a vida dos nossos concidadãos. Socorro-me de um exemplo concreto, de um exemplo que me diz respeito e que se traduz na obrigatoriedade de marcação presencial de consulta da minha mãe, com 83 anos, na USF de Mira-Sintra. Sim, presencial quando o modelo USF foi preconizado para uma organização e gestão dos cuidados de saúde, mais próxima do utente, acessível, menos burocratizada, libertando os profissionais do modelo tradicional de prestação. Como qualquer utente de Sintra, independentemente da unidade de saúde, experiente pela necessidade em navegar na teia das regras de funcionamento do ACES Sintra, entretanto integrado na Unidade Local de Saúde de Amadora/Sintra, sabe bem que tem de chegar cedo para conseguir uma consulta para o mês seguinte. Perdendo aquela oportunidade terá que voltar num dia concreto do mês seguinte para conseguir o desejado atendimento para poder ter acesso à marcação da consulta para então poder acesso à prescrição de exames de que precisa. Chegamos pelas 6h30, à sua frente 30 pessoas, tendo chegado a primeira pelas 5h45. Um calvário.

Este exemplo concreto replica-se por milhares de pessoas enredadas e engolidas na burocracia das USF, UCC ou UCSP, elas próprias com diferentes dinâmicas, com objetivos distantes, com recursos diferenciados e que marcam de forma distinta a forma com o Estado cuida, dentro de um mesmo concelho, e olha aqueles que deve servir.

Os serviços públicos são um desafio para qualquer Governo e no atual reconhece-se o esforço de apaziguar o desalento dos seus servidores em diferentes dimensões. O acordo com professores, oficiais de justiça, agentes de segurança pública, militares e largos setores da classe médica por exemplo, corresponde a uma forma de estar e sobretudo reveladora de preocupação. Na Saúde, apesar da falta de médicos e da pressão do verão, a Ministra Ana Paula Martins tem revelado energia e compromisso, mas a dimensão real do problema obriga a que do ponto de vista estratégico se perceba que a descentralização de competências para outros parceiros seja uma realidade, devendo os municípios ser uma prioridade. Bem sei, porque acompanhei enquanto autarca, que há legislação nesse sentido, que grande parte dos municípios já as aceitou porque considerou que são uma oportunidade tal como aconteceu na Educação a partir da década de 80. Hoje, as Câmaras, se quiserem, e Sintra deu esse passo a tempo, gerem tudo à exceção da colocação de professores. Ficámos pior? Não, pelo contrário e assim é reconhecido pelas famílias.

O quadro de transferência de competências para os Municípios em matéria de Saúde, concretizou-se com o Decreto-Lei nº 23/2019 de 30 janeiro, materializando a responsabilidade nas autarquias locais do planeamento e gestão dos investimentos em novas unidades de prestação de cuidados de saúde primários; da gestão dos trabalhadores afetos à carreira de assistente operacional integrantes das unidades funcionais dos ACeS. Passou também a responsabilizar o poder local da sua participação estratégica nos programas de prevenção da doença e promoção de estilos de vida saudáveis e envelhecimento ativo. Há, por isso, muito trabalho a desenvolver a nível autárquico na área da saúde. Não esqueçamos que a saúde é a maior preocupação dos cidadãos e que é previsível que no futuro as autarquias ganhem ainda mais preponderância nesta área. Em números, sabemos que a saúde representa cerca de 6% da despesa dos municípios, valor bastante inferior ao da média dos países da OCDE que é de 10%. Mas nem tudo passa apenas por investimento financeiro ou por números. É necessário continuar a investir em boas políticas públicas.

O que destaco do atual quadro legal é a oportunidade que o mesmo consagra aos municípios de assumirem papel relevante e determinante na gestão de uma matéria à qual os portugueses dão primazia nas suas preocupações. Dos 308 municípios, apenas 8 recusaram até agora aceitar a transferência de competências e Sintra é uma delas, prescindindo por isso de se assumir como o verdadeiro protagonista na estratégia de planeamento, prevenção e tratamento.  O tempo, este tempo, não pode ser o da espera e o da negociação das questões de menor importância quando há um bem maior para cuidar, o da saúde dos munícipes.

Reafirmo, para ser claro, as autarquias têm a vantagem da proximidade aos seus residentes, comungam das suas preocupações e de uma forma geral procuram encontrar soluções, mesmo quando a responsabilidade não é sua e têm a extraordinária capacidade de rentabilizar recursos, os seus e os da comunidade (escolas, clubes, IPSS, entidades privadas do setor da saúde, instituições académicas, empresas…) associadas à vantagem de terem uma visão de conjunto dos problemas. A Saúde começa na prevenção, fomentando hábitos saudáveis, na vigilância, nos equipamentos de cuidados de saúde, no número e na disponibilidade dos seus profissionais bem como na capacidade de os atrair, na sua organização e sobretudo nas consultas e tratamento. Uma autarquia pode fazer tudo isto? Sim, pode. Deve. Olho para Cascais e vejo o programa de teleconsultas, espreito a atividade de Oeiras e noto a disponibilidade de alojamento para médicos e mesmo em Sintra, por experiência própria, sou testemunha do acordo da Câmara com a Cruz Vermelha Portuguesa local para as questões da saúde mental.

Faz-se muito, mas é importante que se faça muito mais, e de forma permanente, forjando um verdadeiro entendimento entre o poder local e o poder central com vista a darmos um decisivo passo em frente na prestação de cuidados de saúde. Os portugueses prescindem de siglas, de protocolos pífios ou de notícias onde jorram culpas. Este é o tempo de afirmar e dar sentido às soluções.