Estamos à beira de uma revolução significativa na saúde, onde o conceito de “aplicações digitais prescritíveis” está prestes a tornar-se uma realidade tangível. São apps que podem ser prescritas por profissionais de saúde para auxiliar na gestão digital de condições crónicas e na promoção da saúde e do bem-estar geral. São, no fundo, a promessa de uma fusão entre inovação tecnológica e integridade científica, proporcionando ferramentas que não apenas complementam, mas, em alguns casos, podem substituir métodos tradicionais de tratamento, oferecendo soluções mais personalizadas e centradas no utilizador.

Com a possibilidade de prescrição destas aplicações (por profissionais de saúde), os utilizadores poderão esperar soluções mais personalizadas e eficazes, se fundamentadas em evidências científicas robustas. Mas, à data, este não é o cenário com que nos deparamos. Devido à falta de regulação e de critérios de qualidade robustos e cientificamente validados, não estamos em condições de garantir que a revolução digital na saúde seja conduzida com a devida diligência.

E quais as possíveis consequências? Coloca-se em risco a segurança, a efetividade das soluções e o bem-estar dos utilizadores.

Observamos uma tendência inquietante onde qualquer indivíduo armado de competências digitais pode conceber e lançar uma aplicação na Google Store ou Apple Store, sem apresentação de validação científica substancial. Vamos supor que um programador desenvolve uma aplicação que alega utilizar Inteligência Artificial para diagnosticar e oferecer soluções para problemas de saúde psicológica baseando-se apenas em métricas vagas, não validadas e sem reconhecimento acerca do seu consenso científico. Uma vez lançada, esta aplicação pode rapidamente acumular um número considerável de avaliações positivas (por meio de influência de amigos ou por campanhas de marketing bem-sucedidas), apresentando uma noção ilusória de qualidade e confiabilidade para os novos utilizadores.

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A situação agrava-se considerando que, atualmente, a maioria dos utilizadores tende a relacionar a qualidade de uma aplicação com a sua classificação de estrelas, muitas vezes ignorando a necessidade de uma análise mais profunda e critica. Este fenómeno poderá resultar numa disseminação ampla e rápida da aplicação, colocando em risco a saúde e o bem-estar de muitos indivíduos que, na esperança de encontrar soluções inovadoras e acessíveis, acabam por ser vítimas de informações erróneas e práticas não validades cientificamente.

Como psicólogo e cidadão é para mim preocupante olhar para o mercado das aplicações digitais em saúde mental e dar conta de que o surgimento exponencial deste tipo de soluções não tem sido acompanhado pelo correspondente desenvolvimento de instrumentos, quer de avaliação dos seus impactos, quer da sua regulação de qualidade. Isso pode colocar em risco a sua utilidade, transformando negativamente a perceção pública dos benefícios que podem daqui advir.

Um em cada cinco portugueses sofre de um problema de saúde psicológica (23% da população). Somos o segundo país da União Europeia com maior prevalência de problemas de saúde psicológica e o quinto da OCDE com o consumo mais elevado de ansiolíticos e de antidepressivos. Sabemos ainda que o número de psicólogos/as no Serviço Nacional de Saúde (SNS) não é nem de perto aquele que seria desejável face a tais números. Tudo isto pode levar a que, quem não consegue ter acesso ao SNS, opte por uma solução que está à distância de um clique.

Como podemos, então, garantir que as aplicações que usamos são de confiança? Destacaria sete pilares que considero cruciais para assegurar a eficácia e segurança das aplicações nesta área:

  1. Validação científica. É vital que estas ferramentas sejam desenvolvidas com um substrato sólido em ciência e pesquisa. Consultar a “ficha técnica” da app pode dar algumas pistas sobre os profissionais envolvidos;
  2. Privacidade e confidencialidade. É imprescindível proteger as informações pessoais dos utilizadores, criando um ambiente de confiança e segurança;
  3. Cibersegurança. Só assim se pode garantir a implementação de sistemas robustos para resguardar os utilizadores de ameaças virtuais;
  4. Usabilidade e acessibilidade. Reconhecer a importância de criar aplicações que sejam “amigas” e acessíveis a todos, facilitando assim uma navegação sem entraves;
  5. Educação e literacia digital. Um campo da maior relevância, no sentido de promover a educação dos utilizadores para que possam navegar com confiança, fazendo escolhas informadas e seguras;
  6. Feedback e melhoria contínua. Deve incentivar-se uma cultura de feedback constante que possa levar a melhorias contínuas nas aplicações disponíveis;
  7. Colaboração multidisciplinar. Ao unir especialistas de diferentes campos podemos criar soluções mais holísticas e que atendam de forma eficaz às necessidades de quem as usa.

Estes critérios, em conjunto com outros que possam vir a ser considerados pertinentes, terão de ser o quanto antes definidos e consensualizados para depois informar qualquer processo de regulação futura.

Neste cenário, é imperativo tecer uma rede de segurança robusta, alimentada por contribuições multidisciplinares. A ciência psicológica, com sua compreensão profunda da mente humana, pode desempenhar um papel vital, oferecendo insights valiosos sobre como estas aplicações podem ser desenvolvidas e avaliadas com um enfoque centrado no ser humano.

Num mundo onde a tecnologia se confunde de forma cada vez mais intrincada com o quotidiano, esta expansão, embora marcada por inovações notáveis, levanta preocupações significativas sobre a qualidade e segurança destas ferramentas. Sobretudo considerando a vulnerabilidade emocional de muitas pessoas aquando da procura destes recursos digitais.

Enquanto muitos de nós nos maravilhemos com as inovações na área da saúde digital, é vital que não nos deixemos deslumbrar apenas pelo brilho tecnológico. As implicações de usar uma aplicação sem um crivo científico das áreas às quais estas apps se destinam podem ter consequências negativas profundas, especialmente quando se trata da nossa saúde mental.

Encontramo-nos num ponto de inflexão crítico no qual será necessário criar um futuro onde as aplicações de saúde digital sejam não apenas inovadoras, mas também seguras, éticas e profundamente enraizadas no entendimento humano. É um caminho que exige colaboração, inovação e, acima de tudo, uma vontade coletiva de priorizar o bem-estar.

Miguel Oliveira é especialista em Psicologia da Educação e Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações. Membro da Direção Nacional da Ordem dos Psicólogos Portugueses, é coordenador da Equipa de Cibersegurança e da Aplicação Para o Treino de Tomada de Decisão Ética em Realidade Virtual da instituição. É doutorando em Health Data Science na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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