A atual pandemia Covid-19 deixou o mundo em suspenso. Até há poucos meses nenhum leitor seria capaz de imaginar que um “qualquer” vírus pudesse, de forma tão célere, alterar os padrões sociais de um século dominado por um crescimento tecnológico nunca visto.
O continente Europeu sofreu o maior choque social e de saúde pública dos últimos cem anos. Depois de três meses caóticos, estamos agora à beira de superar o choque da primeira frente de onda.
Em Portugal, melhor que noutros países, superamos o risco do crescimento exponencial, minimizamos o número de mortos e conseguimos manter a suficiência de meios disponibilizados pelo sistema de saúde. Apesar disso, a possibilidade de réplicas imediatas ou novas vagas mais à frente, irá pelo menos no curto prazo limitar o regresso à normalidade que tanto desejamos.
À emergência imediata de saúde pública, segue-se uma avalanche de necessidades assistenciais da população, no contexto de um SNS que já antes mostrava (re)conhecidas insuficiências e clara necessidade de reforço de financiamento. Por outro lado, as repercussões sociais, económicas e políticas resultantes de infindáveis semanas de paralisação, obrigam a que neste período de relativa acalmia se retome a atividade possível, de forma a repôr o equilíbrio também possível, entre os vários sectores de actividade.
A importância de desenvolver rapidamente uma vacina eficaz ou um tratamento específico nunca foi tão unânime. Suponho que mesmo aqueles que irresponsavelmente têm negado a importância das vacinas, gostariam agora de poder contar com essa arma. Suponho também, que muitos daqueles que defendem práticas médicas não sustentadas na evidência, desejam agora que a ciência da evidência consiga aquilo que as “ervas” e as “agulhas” são incapazes de dar. Quando passar a crise, terão certamente tempo de reivindicar os seus poderes.
Na ausência dessa vacina e desse tratamento, restam-nos de momento medidas não farmacológicas, práticas e comportamentos responsáveis, necessariamente coletivos, sincronizados, capazes de combater o risco de transmissão entre pessoas. É nesse quadro que teremos que retomar a actividade possível.
A oftalmologia, enquanto especialidade médica e cirúrgica, tem especificidades que a tornam uma prática de particular risco no atual contexto pandémico.
O primeiro risco resulta das características anatómicas do globo ocular; por um lado o olho é revestido por uma superfície anatómica semelhante à superfície que reveste o interior do nariz e da boca; por outro lado, o circuito da lágrima passa pela superfície ocular e termina na via aérea (nariz e garganta).
O segundo fator de risco tem que ver com a tipologia e as características das manobras realizados durante as consultas, os exames e a cirurgia. A observação Oftalmológica implica um posicionamento alinhado de proximidade entre médico e doente, cujo risco de contagiosidade, não sendo desprezível, é susceptível de ser minimizado. Numa primeira fase (início da fase de crescimento exponencial), o Colégio de Oftalmologia da Ordem dos Médicos, em parceria com a Sociedade Portuguesa de Oftalmologia (SPO), elaborou de forma antecipada um conjunto de normas e de recomendações para a prática Oftalmológica, durante a fase de lockdown que se esperava.
No atual contexto de retoma, o mesmo Colégio publicou um exaustivo documento de oitenta recomendações de segurança para as atividades de consulta, exames, serviço de urgência e cirurgia. O documento resulta de uma extensa consulta bibliográfica, de forma a sustentar posições de relevância científica, como é exigido a um órgão técnico-científico da Ordem dos Médicos. O documento, que tem também a chancela da SPO, pode ser consultado no site da Ordem dos Médicos, e também no site da SPO.
As recomendações têm por base os conhecimentos atualizados relativamente à forma de transmissão do SARS-CoV2, a sua infecciosidade, o risco de infeção no contexto da prática clínica e a análise da situação em Portugal. Com base no melhor conhecimento, a estratégia desenhada pelo documento aplica as metodologias recomendadas da DGS e por outras organizações internacionais de prestígio. Finalmente sustenta-se no conhecimento prático das especificidades da clínica e das capacidades institucionais.
Os aspectos chave da estratégia de minimização de risco são o (i) o espaço disponível (mais do que uma área de 20 m2 por pessoa, importa a disposição do espaço e a possibilidade de distanciamento entre pessoas); (ii) a organização sincronizada das várias áreas técnicas dos hospitais e clínicas; (iii) a organização comunicacional capaz de permitir ajustes estratégicos em tempo real; (iv) o stock e capacidade de renovação de equipamentos de protecção pessoal; (iv) e os recursos materiais e humanos disponíveis para tarefas de higienização dos espaços e para vigilância comportamental dos intervenientes.
É impossível enumerar aqui todas ou mesmo a maioria das recomendações. Em termos práticos regulam-se as regras de acesso a hospitais e clínicas (com inclusão de um inquérito epidemiológico), as condições dos espaços de espera e de consulta, as obrigações e imposições aos profissionais de saúde e aos doentes durante as consultas e exames, e as condições de admissão ao bloco operatório.
As regras de priorização de consultas, exames e procedimentos cirúrgicos é um aspecto crucial num período excepcional, em que teremos de fazer escolhas. O algoritmo apresentado tem em conta o risco de perda de visão em espaços temporais de curto ou médio prazo e o carácter de reversibilidade dessa perda.
Em Portugal compete à Ordem dos Médicos (OM) regular a qualidade da medicina, e de contribuir para a defesa da saúde dos cidadãos e dos direitos dos doentes. Os colégios de especialidade são o braço de competência técnica especializada da OM.
Quer isto dizer, que qualquer recomendação em termos de saúde visual e das respectivas regras de segurança devem ter a chancela da OM, ouvido o parecer do respectivo colégio.
O jornal Observador, publicou há dias um conjunto de regras e recomendações emitidas pela ANO (Associação Nacional dos Óticos) em parceria com a UPOOP (União Profissional dos Óticos e Optometristas Portugueses). Esse conjunto de recomendações ultrapassa largamente os princípios que devem ser respeitados no âmbito de um protocolo de espaços de comércio e serviços.
O documento pode dividir-se em duas partes: (i) regras sanitárias emanadas da norma 014/2020 da DGS, relativas aos espaços comerciais e de prestação de serviços e (ii) recomendações “avulso”, relativas à prática de atos que entram claramente na esfera do ato médico.
A primeira parte do manual é um documento inespecífico, um “ipsis verbis” da norma 014/2020 da DGS, sem adequação específica ao ramo de negócio a que diz respeito.
A minha preocupação, em todo o caso, está na segunda parte do “manual”, que desrespeita de forma grosseira uma competência específica da Ordem dos Médicos, uma vez que diz respeito a normas de consultas e observação de doentes.
A assunção pública da realização de atos e manobras de medicina especializada deve ser alvo de intervenção por parte das autoridades de saúde. A oftalmoscopia, a tonometria de contacto e a avaliação da superfície ocular são atos médicos diferenciados, que algumas pessoas não médicas têm a ilusão de saber realizar. A não consciência da ignorância, representa um risco de saúde pública que deve ser contido.
O “manual” recomenda o uso do foróptero por ser mais fácil de desinfetar que uma simples armação de prova. Olhando para as imagens de ambos, alguém acredita nisso?
Com as opiniões a circularem muito rapidamente e de forma democratizada, temos frequentemente a sensação (perigosa) de que todas as opiniões têm o mesmo valor; este é seguramente o risco maior das redes sociais e dos fóruns de discussão pública. Em democracia as opiniões podem ser todas iguais, mas em ciência seguramente não são! Como disse Shakespeare: “o saber e a ignorância transmitem-se como a doença, daí a necessidade de se saber escolher as companhias”.