Quando, num daqueles fins de tarde em que o calor não cede ao zéfiro da praia, o dono do Bar Veloso anunciou a Tom Jobim um telefonema da Califórnia, os ponteiros do velho relógio que pendia numa parede adornada com imagens do passado cristalizaram com tamanha curiosidade. E o mesmo sucedeu com as ondas atlânticas, que teimavam em roubar ao céu um azul desmedido nesse longo e memorioso Dezembro de 1966. Na verdade, o tempo parou em todas as ruas, praças e morros da cidade, silenciando o seu bulício natural.

Jobim ergueu-se com a prontidão de um soldado na formatura, pousou o copo de chope e abandonou a tertúlia de músicos e poetas, não sem antes pedir que o avisassem se aquela garota passasse novamente a caminho do mar. Nesse local, anos antes, vira com Vinicius de Moraes a mulher que inspirara a mais emblemática canção de bossa nova. Escoltado por um empregado, fiel escudeiro dos clientes mais assíduos, dirigiu-se ao balcão para atender a chamada e deslindar o mistério. Surpreendeu-o uma voz inimitável, daquelas que julgamos terem o poder de apaziguar tumultos ou até guerras seculares. Soava-lhe tão familiar como inacessível. Intrigados, os seus amigos observavam-no com a indiscrição que Hitchcock pedira, num dos seus filmes, a James Stewart e a Grace Kelly. Contudo, apenas conseguiram ouvi-lo exclamar «seria uma honra». Num sopro, o compositor voltou à mesa e logo foi cravejado por olhares impacientes que prolongaram o instante numa cena merecedora das descrições de Raymond Chandler. A revelação não tardou: recebera um convite inesperado para uma gravação nos Estados Unidos da América. Os ponteiros do relógio retomaram a marcha, e a música ouviu-se novamente em Ipanema.

O Natal do Rio diluiu-se na calidez do Verão, e o ano novo despontou com o estrépito dos grandes acontecimentos. Um pouco por todo o lado, nasceriam obras tatuadas com êxito e glória. Em Liverpool, prestes a sair do tubo de ensaio, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Assente numa ideia de Paul McCartney, a criação de uma identidade alternativa para o quarteto, o álbum acolheria músicas sem as quais dificilmente imaginamos as nossas vidas. Na desaforada capa, um sem-número de celebridades intemporais: Aldous Huxley, Bob Dylon, Edgar Allan Poe, Fred Astaire, Marilyn Monroe, Marlene Dietrich. A diva Aretha Franklin transformaria Respect, de Otis Redding, num hino imortal da igualdade. Em New Jersey, Frankie Vallie e os Four Seasons declarar-se-iam em Can’t Take My Eyes Off You, e deles se enamoraria uma geração. Os Doors lançariam o seu primeiro trabalho de estúdio: The Doors. Jimi Hendrix conquistaria o seu país com um concerto em Monterey, pressagiando o Woodstock. E, na literatura, Gabriel García Márquez desvelaria a miríade de façanhas, tragédias e milagres da família Buendía-Iguarán em Cem Anos de Solidão.

Como previsto, Tom Jobim despediu-se do Veloso, de Copacabana e do Corcovado e rumou a Los Angeles, onde se instalou no hotel Sunset Marquis, enquanto aguardava o anfitrião, que tinha viajado para Barbados e ainda não regressara. Dizia-se que este vivia uma relação tensa e instável com a mulher, Mia, e que recuperava das desventuras conjugais no paraíso caribenho. O encontro ocorreria tão-só no final de Janeiro, pelo que os dias de Jobim eram passados ao piano ou em passeios diletantes nos bulevares pictóricos que rasgam a cidade. Recebia diariamente o alemão Claus Ogermen, escolhido para dirigir a orquestra e compor os arranjos, e com ele burilava os temas escolhidos. Em cada pauta, o esmero, a subtileza e o requinte do ourives que entrelaça fios invisíveis até completar cada peça de filigrana. Nas horas mortas, escrevia ao inseparável amigo Vinicius de Moraes, dando-lhe conta da solidão e das saudades do Rio.

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A languidez e a espera dissolveram-se em novo telefonema, desta feita do produtor Sonny Burke. Começariam finalmente as gravações. Os dias em que Jobim percutia indistintamente as teclas velhas e desafinadas do piano que o seu padrasto alugara para Helena, sua irmã, eram agora ternas e distantes memórias. À sua espera, num magnífico estúdio, um músico que arrebatara o Carnegie Hall, que deslumbrara John Kennedy e a Casa Branca, e cuja voz se impregnara indelevelmente no planeta — como se, em cada esquina fria, nas horas silentes da madrugada, fosse possível encontrar um homem solitário, de fato escuro e chapéu de veludo, vagamente escondido na névoa de um cigarro.

Quando Jobim entrou, já Sinatra assobiava as melodias que brevemente renasceriam. A Voz, como já toda a gente lhe chamava, exigira cantar apenas os clássicos. Não gostava de ensaiar. Por seu turno, o maestro não prescindiu de um compatriota na bateria, para assegurar as açucaradas síncopes da bossa nova. Elegeu Dom Um Romão, que deixara o Brasil e tocava num clube de Chicago. O entusiasmo das apresentações evolou-se na luz vermelha das cabinas, que irrompeu com solenidade. A sessão iniciou-se com Dindi, e os primeiros compassos revelaram uma sinergia que não mais se dissipou. Jobim teria preferido tocar piano, mas o som aveludado da sua guitarra — do seu violão — era o chão perfeito para as músicas escolhidas. Entre elas, Garota de Ipanema, Meditação, O Amor em Paz, Corcovado, Insensatez, Inútil Paisagem. Num dos intervalos, Jobim pediu contenção a Sinatra, aproximando o polegar dos restantes dedos e simulando o apertar de uma bola tão pequena como um fruto — ou tão vasta como um sonho. O cantor seguiu a indicação e, pouco depois, deixou escapar que não cantava tão suavemente desde que tivera laringite, provocando risos e espantos. A harmonia complexa das composições de Jobim é matizada por melodias simples e doces, que jamais poderiam ser interpretadas com impulsos diluvianos. Por vezes, bastam silenciosos lamentos, ou simplesmente murmúrios de emoção turvada. A fusão não se completou sem Change Partners, de Irving Berlin, I Concentrate on You, de Cole Porter, e Baubles, Bangles and Beads, de George Forrest e Robert Wright. Ao fim de três dias, um abraço entre as duas lendas marcava o fim da aventura: o momento mais importante na diáspora da bossa nova desde que Stan Getz convidara João Gilberto, Astrud Gilberto e Tom Jobim para o superbíssimo Getz/Gilberto, gravado em 1963.

Antes de identificar um movimento e um estilo, a expressão «bossa nova» designava algo original, um modo distinto de proceder. Em Chega de Saudade (Tinta-da-china), o escritor Ruy Castro relata que a ligação à música ocorreu apenas em 1958, no anúncio de um espectáculo no Grupo Universitário Hebraico, uma associação de estudantes situada no Flamengo, bairro nobre do Rio de Janeiro. Escrito a giz, numa lousa: «Hoje Sylvinha Telles e um grupo Bossa Nova». Neste contexto, a expressão cunhava a novidade, e não o estilo musical. Não se tratava de um grupo de bossa nova. Era somente um grupo bossa nova. Dele faziam parte os iniciantes Carlos Lyra e Nara Leão.

Pouco tempo depois, Tom Jobim e Newton Mendonça, que haviam passado a usar «bossa nova» para indicar o ritmo sincopado do violão, compuseram uma música sobre os desafinados, depois de zurzirem alguns cantores que não raro acompanhavam na noite carioca. Num dos irónicos e humorados versos, a confissão: «Eu mesmo mentindo, devo argumentar / Que isto é bossa nova / Que isto é muito natural». Nesse ano, João Gilberto gravaria Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. As constantes pulsões do seu violão — arritmias incontidas, irreverentes — sublimariam um estilo destinado a propagar-se rapidamente por todo o mundo.

Em 1963, já Leonard Bernstein reconhecia o fervor em torno da bossa nova numa apresentação orquestral transmitida pela CBS e condensada no texto The Latin American Spirit, que versa sobre música latina, cuja cor e ritmos sincopados tanto o influenciaram em West Side Story, à semelhança do que sucedeu com outros compositores, como Aaron Copland.

Num teatro antigo enrugado pelo tempo, ou num bar de Verão invadido pela praia, a bossa nova perdura e continua a espalhar a indizível mistura de samba e jazz, balanço e quietude, ímpeto e meditação — como no dia em que Los Angeles e Ipanema se uniram numa nota só.

Sem mapas nem didascálias, Jobim e Sinatra viveram plenamente até ao fim da chama, escrevendo nas canções o seu destino e deixando no passado a redenção.

Livres, fizeram-no à sua maneira.