A teia de tráfico de influências e as suspeitas de corrupção no sector da Defesa vêm confirmar que, também aqui, o papel do Estado não é apenas negligente mas serve sobretudo o propósito de manter a “engenharia” das “portas giratórias” entre política e sector empresarial público.
Há muito que se questiona sobre o futuro do sector empresarial da Defesa, onde Portugal teve e deveria ter mantido vantagens comparativas em relação a muitos dos nossos concorrentes nos sectores da manutenção aeronáutica, construção naval e serviços / indústrias associadas, incluindo as tecnológicas.
A participação do Estado, sem atrapalhar, faz, por uma vez, sentido neste sector porque potencia parcerias e cria oportunidades de negócio nas chamadas indústrias de Defesa. Os programas bilaterais de cooperação na área da Defesa ou a participação nacional na política da União Europeia de Segurança e Defesa são factores potencialmente facilitadores de criação de riqueza por via da exportação de bens e serviços neste domínio.
A Empordef SGPS foi precisamente criada nos anos 1990 para reunir as participações públicas no “hub” da economia Defesa e para criar sinergias entre políticas públicas e estratégias empresariais. No entanto, como é tradição nacional, transformou-se numa entidade enquistada pela inércia, gerindo menos-valias e dívidas e, mais importante de tudo, servindo basicamente para empregar ex-políticos ou promover futuros políticos nos vários conselhos de administração das empresas participadas do então “pólo de Lazarim”.
A garantia da participação social do contribuinte, por via do governo, assegurava que as empresas haviam de ter crédito e financiamento, por muito negativo que fosse o respectivo resultado operacional.
Esta circunstância foi ainda agravada porque, enquanto em França, Reino Unido ou Espanha se simulava o fim eterno dos tempos de conflito militar e o adquirido da segurança no espaço europeu mas se continuava a produzir e a exportar equipamentos e armamento, em Portugal acreditou-se mesmo nessa realidade, desinvestindo-se acentuadamente em recursos humanos.
As indústrias de Defesa, à excepção das operações de venda de uns quanto simuladores de voo e de projectos de fornecimento da peças para novos aparelhos da força aérea brasileira – caso do KC-390, da Embraer – foram caindo na indiferença geral dos governos e no desastre da intervenção do Estado ao nível da gestão em empresas como os Estaleiros Navais de Viana do Castelo, a Edisoft ou a Empordef Tecnologias da Informação. Por altura da intervenção da Troika, os resultados líquidos negativos da Empordef chegavam quase aos 60 milhões EUR e o passivo da empresa ultrapassava os 820 milhões EUR. Como sempre, a limpeza veio de fora e o governo dito da Troika acordou a venda de participações das empresas mais atractivas para colmatar os prejuízos acumulados ao longo de vários anos num longo processo de liquidação da Empordef decidido em 2014 mas que se arrastou durante o governo da “gerigonça”, só ficando concluída no final de 2019. A extinção da holding Empordef foi imediatamente substituída pela Plataforma das Indústrias de Defesa Nacional (IdD), um novo “tecido” para embrulhar os ditos interesses nacionais no sector. A IdD, cujo capital é detido pelo ministério da Defesa e pelas Finanças queria reduzir o número de empresas de 12 para 8, com a respetiva transmissão para a IdD das participações do Estado na OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal (35%), no Arsenal do Alfeite, na Navalrocha – Sociedade de Construção e Reparações Navais, na EEN – Empordef Engenharia Naval, na EID, na Empordef TI, na EDISOFT e na Extra – Explosivos da Trafaria.
A IdD serviu para “gerir” as participações do Estado, criando-se mais uma plataforma (base tecnológica e industrial de Defesa) e, claro, para “assessorar” nas (poucas) aquisições militares e na execução da lei de programação militar.
Presume-se que a “sensibilidade das matérias” também aqui sirva, à semelhança de outros “sistemas”, para não serem prestadas contas ao ponto do próprio governo pedir (a si próprio) uma auditoria aos negócios da Defesa após os sucessivos escândalos no sector.
Na verdade, desde a criação da Empordef SGPS até à IdD Portugal Defense, com alguma excepção para pólo aeronáutico onde manda a Embraer, Portugal continua a perder oportunidades para criar valor.
Se tradicionalmente a articulação entre os serviços do ministério da Defesa, as Forças armadas e as ditas indústrias de Defesa tem sido tarefa difícil face à inércia vigente e à falta de uma orientação clara, em Portugal os gestores deste sector são em regra pouco atreitos a funções comerciais, à excepção das visitas a feiras internacionais e múltiplas viagens ao estrangeiro, bem entendido.
Também os militares, caso dos adidos de Defesa, consideram não lhes caber funções comerciais, de promoção e venda da produção nacional em equipamentos ou tecnologias de Defesa. Ao contrário, os adidos de Defesa acreditados em Portugal são mandatados para promover o respectivo sector empresarial da Defesa.
Num momento em que a União Europeia, após várias décadas de dormência, percebeu que se tem de se afirmar interna e externamente também pela via da Defesa, mobilizando instrumentos financeiros de apoio à prevenção de conflitos e construção da paz, Portugal mantém-se à margem como produtor de meios de Defesa e de Segurança e afastado dos canais de influência e de promoção em Bruxelas (UE e NATO), em mais um fracasso de anos diplomático-militar.
O Mecanismo Europeu de Apoio à Paz (European Peace Facility), criado em 2021, é hoje o instrumento de excelência no apoio a países terceiros através de financiamento de programas de treino e formação militares e civis, financiando nomeadamente a oferta de material para uso militar (maioritariamente não letal) produzido pelos Estados-membros. Como sempre, a França, Espanha, Alemanha ou Holanda estão fortemente envolvidos nestes programas, em benefício das suas empresas de Defesa, mesmo em países – como Moçambique – ditos “lusófonos”. Num país onde o jihadismo tomou conta da sua província do norte (Cabo Delgado) e onde Portugal contribui com formadores militares, não consta qualquer referência à presença do sector empresarial da Defesa português nas iniciativas de apoio material às forças armadas de Moçambique – nem sequer da OGMA que poderia fornecer, através da UE, meios de transportes e serviços de manutenção aeronáutica num país onde a distância entre Maputo e a capital de Cabo Delgado é de 2500 kms, pouco menos que a distância entre Lisboa e Berlim.
Apesar do “poderia ser”, por cá, salvo honradas excepções, o Estado continua ser o cliente e o provedor de si próprio no sector da Defesa. Os seus representantes e as empresas participadas parecem continuar a ser meros intermediários e poisos temporários para os amigos do governo, agora “gestores”, até algum mais ambicioso estragar a festa por uns tempos, até à conclusão de mais uma auditoria e de uma comissão parlamentar de inquérito.