Estou com todos os que gostariam de colocar uma reforma do sistema político entre as prioridades nacionais. Nesta reforma, que teria de passar por uma refundação constitucional, o papel do Presidente da República seria naturalmente tocado. O actual presidente Marcelo tem alternado entre uma figura simpática e inócua e um actor politicamente inquieto.

A actual situação – que não chamo de “crise” – revelou um Marcelo incoerente, primeiro ameaçando todos os que não viabilizariam o Orçamento de Estado, depois funcionando por delegação do Governo PS na promoção, sem sucesso, de “arranjos” informais que viabilizariam o OE e finalmente assumindo, em confusa plenitude de funções e atribuições, a inevitabilidade da dissolução da Assembleia da República e marcação de eleições mas antes de falar com os partidos políticos ou mesmo com o Conselho de Estado, cuja utilidade se poderia finalmente justificar.

A informalidade dos mandatos de Marcelo, tão do agrado de muitos dos portugueses, confunde-se agora com jogo político, numa impressionante ausência de simbolismo e de sobriedade.

Se este é o presidente que existe, é com ele que o país terá que contar. Não é apenas o falhanço da frente de esquerda que está em causa: é também o falhanço da viabilização dessa frente por Marcelo. No entanto, esta fatalidade poderá, desta vez, significar aquilo que o país espera de um PR: contribuir decisivamente para a credibilização da política pela transparência – coisa que Marcelo, o homem dos bastidores, poucas vezes tem feito.

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Na história recente em democracia, vários PR’s tiveram de intervir na gestão das crises dos governos – algumas provocadas por eles próprios. Nesta gestão de crises, a dos timings é central. E na gestão dos timings, a data das eleições torna-se, no contexto partidário actual, decisiva.

O PSD foi “apanhado” a meio da sua contenda interna pelo chumbo do OE e pela intenção de Marcelo em dissolver a AR. As eleições internas não tiveram qualquer relação com o “caso OE” mas sim, em última instância, com os resultados “poucochinhos” das eleições autárquicas e com a constatação de que o partido não “arranca” com a direcção de Rui Rio. Este facto altera e deverá condicionar a decisão de Marcelo quanto à data das eleições legislativas.

A Marcelo caberá ter em consideração todos os factores, mesmo que ouvindo todos e cada um, e em particular a necessidade de haver uma oposição que se apresente em condições para disputar a alternância. É por isso essencial que dê tempo ao PSD para se decidir sobre a liderança e se reorganizar para a disputa eleitoral. A pressa beneficia o status quo em geral, potenciando assim uma novela política de instabilidade:

  • O PS iria a jogo contra um PSD excessivamente fragilizado, correndo-se o risco do país ser governado pela maioria absoluta menos representativa de sempre;
  • A não existir qualquer maioria absoluta, o ainda PM António Costa poderá apresentar uma nova maioria simples como uma derrota pessoal, abrindo o cenário de eleições no PS com um futuro secretário geral a “montar” uma nova “geringonça” com a esquerda, de onde nada de novo viria e a ameaça de crise estaria sempre pendente;
  • Qualquer cenário de acordo pós-eleitoral entre os partidos à direita do PS estaria condenado a falhar porque, dos três possíveis parceiros, PSD, CDS-PP e IL, apenas o último, pela sua dimensão, mantém uma direcção incontestada enquanto os restantes estão ainda em processos de clarificação interna. As oposições internas serão as primeiras a desmobilizar;
  • Um PSD em processo de disputa interna – algo crispado…- apresenta-se a eleições já derrotado , em particular se a actual direcção encabeçar o partido pelo facto de não ser novidade (“mais do mesmo”), desmobilizando igualmente parte do eleitorado não socialista que poderia decidir votar em algo novo (como aconteceu em Lisboa com Carlos Moedas);
  • Com o PSD e o CDS-PP partidos em facções em pleno período eleitoral, o Chega irá certamente capitalizar por se apresentar como “anti-sistema”, num sistema a fazer muito má figura de si próprio. O crescimento do Chega não representará qualquer “avalanche” política mas torna-se crítico face às “juras” de que não existirão alianças ou entendimentos nacionais entre PSD e Chega, tanto por Rio como por Paulo Rangel. À improbabilidade de uma frente de esquerda (excepto num cenário de saída de António Costa) junta-se a de uma frente de direita, criando um bloqueio de governo sem fim à vista, talvez apenas contornado por um muito improvável governo de iniciativa presidencial.

Nestes cenários, afigura-se um mal necessário um governo em gestão mais prolongado, limitado constitucionalmente, que permita à alternativa possível de governo de reorganizar, com os mesmos ou com diferentes protagonistas.

Marcelo tem tido muitas vezes pressa excessiva, caindo na precipitação das decisões e precipitando os factos e acontecimentos, muitas vezes apenas “porque sim” – existindo dessa forma. Esperemos que desta vez não o tenha, terminando assim o seu mandato… com dignidade.