A política do mundo livre não está a acompanhar o ritmo da evolução tecnológica e sem compreendermos a tecnologia mais recente não há geostratégia que resista.
Para entender qual é a pressa, perspetivemos o desenvolvimento da espécie humana utilizando um relógio imaginário que resume 200 000 anos em apenas 24 horas. Durante toda a madrugada e a maior parte do dia, nem sequer sabíamos falar. Até ao final da tarde, o único feito tecnológico digno de menção havia sido o domínio do fogo. Cerca das 18 horas, articulámos a linguagem e o ritmo da inovação tecnológica aumentou finalmente. Mesmo assim, a agricultura só apareceu perto das onze da noite e a primeira revolução industrial surgiu apenas minuto e meio antes da meia-noite.
Faltavam 17 segundos para o presente quando a Internet foi criada e passados 8 segundos ficámos apreensivos quando o campeão mundial de xadrez foi vencido pela inteligência artificial do computador Deep Blue; não gostamos de perder nem a feijões, quanto mais derrotados por robots…
Enquanto o ponteiro rápido percorria os últimos 5 segundos deste dia figurado, uma nova linguagem começou a ser usada na Internet, uma linguagem cujo vocabulário só admite a verdade. Aviso os leitores de que este é um facto matematicamente demonstrado, isto é, podemos ter a certeza sobre a exatidão desta linguagem. Aliás, se esta não fosse uma verdade insofismável, a cotação das criptomoedas seria zero, em vez de valerem milhares de milhões de euros.
Como é que moedas descentralizadas emitidas por qualquer pessoa inspiram tal confiança no mercado? A resposta é que a nova linguagem falada na Internet desencadeou uma descentralização digital ordeira, segura e eficaz. No entanto, tão poderoso protocolo também pode ser usado de má-fé. Esta linguagem tanto pode ser falada às claras, organizando, em redes abertas e transparentes, o dinheiro, os estados e as comunidades, como pode, pelo contrário, ser sussurrada (em código fechado), em redes opacas ao escrutínio público, facilitando o conluio entre dirigentes autocráticos.
É este novo tipo de confiança que explica as novas moedas digitais e os chamados smart-contracts, isto é, contratos inteligentes (por serem autoexecutáveis), que programam e garantem automaticamente o seu próprio cumprimento. Por outras palavras, os acordos quantificáveis passam a poder ser firmados sem intermediários. As consequências desta mudança para a nossa vida são tão importantes que resolvi editar um livro científico sobre essas implicações.
A desintermediação em curso é inegável e determina uma nova arquitetura do poder, com implicações políticas, económico-financeiras e militares… Por isso, a ciberestratégia tem de vir rapidamente em socorro da geostratégia, integrando o raciocínio das nações que refletem sobre política internacional.
Graças a um progresso tecnológico que se revelará, de uma forma ou de outra, politicamente decisivo, a descentralização digital permite evitar muitos dos riscos cibernéticos e políticos associados aos sistemas centralizados. Concentrar fisicamente dados sensíveis é juntar os ovos todos no mesmo cesto, nos chamados single-point-of-failure que explicam os ataques informáticos recentes. Esta vulnerabilidade deve ser resolvida tornando os sistemas de informação redundantes, isto é, replicando o seu funcionamento em redes de milhares de computadores com recursos idênticos.
Já em 2017, o coronel Vincent Alcazar, reservista da força aérea norte-americana, contemplava os efeitos do uso militar da tecnologia blockchain, enfatizando que permite “aumentar a segurança dos dados e melhorar o desempenho operacional de cada sistema de armas que toca”. Imagine-se o poder competitivo de “enxames” de drones militares inteligentes capazes de se auto-organizar, com recurso à inteligência artificial, sem que as respectivas operações dependam de quaisquer pontos singulares de comando. Calculo que isto possa parecer ficção científica, mas é a pura realidade.
Por outro lado, a centralização de imensas quantidades de dados (Big Data) pode alavancar demasiado o poder da inteligência artificial e facilitar a vida a quem a pretenda virar contra as pessoas. Ora, é possível mitigar este risco descentralizando o armazenamento de dados e exigindo consensos alargados para conseguir operá-los. Estes consensos podem ser obtidos e implementados instantaneamente graças à nova linguagem da verdade, através dos referidos contratos autoexecutáveis. Em tempo de guerra, esta rapidez é uma vantagem estratégica decisiva. Só isto bastaria para considerar a descentralização digital uma opção política incontornável. Como recentemente afirmou com extrema lucidez um ex-embaixador português, uma vantagem objetiva do presidente Putin sobre os líderes ocidentais é não ter de esperar seja por quem for para tomar decisões.
Não é a guerra que muda paradigmas, é a tecnologia. Quem usa a tecnologia a seu favor torna-se sempre mais poderoso, temido ou respeitado. Assim foi desde a idade da pedra lascada até à presente era nuclear. Pelo caminho, tecnologias tão importantes como a agricultura criaram excedentes alimentares e permitiram o armazenamento de víveres, viabilizando a vida sedentária e transformando tribos nómadas em sociedades centralizadas e organizadas. As hierarquias foram moldadas pelas sucessivas revoluções industriais. Ao longo da história, a tecnologia centralizou o poder e estratificou a sociedade. No entanto, desta vez, surgiu uma tecnologia diferente, de certa forma simétrica às demais, cujo principal atributo distintivo é permitir estruturar, organizar e estabilizar a descentralização. Parece impossível, mas, o impensável também acontece. A principal questão (ainda em aberto apenas no mundo livre) é a utilização política desta tecnologia.
As tecnologias não são boas nem más; elas são mais ou menos eficazes. Obviamente, quanto mais eficazes forem, mais atenção elas devem merecer. No entanto, como a tecnologia blockchain é a primeira a descentralizar ao invés de centralizar, é difícil perceber a sua eficácia e dedicar-lhe a devida atenção. Enquanto alguns se tornaram rapidamente bilionários à conta da tecnologia mais transformadora da história, o regime chinês preferiu aproveitá-la politicamente, criando o yuan digital para complementar o seu sistema cibernético de créditos sociais. Terá sido este o único regime autoritário a sussurrar esta linguagem criptográfica? Suspeito que não, e estou certo de que esta tecnologia está atualmente a ser equacionada por mais líderes autocráticos e seus acólitos.
Todos percebemos que o risco da centralização dos dados surge agravado em situações de censura financeira. Qualquer indivíduo poderá ter os seus pagamentos bloqueados. Também aqui, só a descentralização digital protegerá a democracia: com as decisões a terem de envolver consensos alargados, o dinheiro digital não pode ser congelado de forma arbitrária, nem os pagamentos bloqueados discricionariamente.
Veja-se o caso premonitório dos camionistas em protesto no Canadá, cujas contas bancárias foram congeladas pelo governo. Este é um sinal evidente do que pode vir a acontecer. Foi noticiado que estes camionistas têm recebido doações na moeda digital Bitcoin, mostrando que a descentralização digital também evita situações de censura financeira. Obviamente, não interessa aqui se esses camionistas têm ou não razão, mas, sim, ajuizar se é lícito perderem a sua autonomia financeira sem terem sido julgados e condenados por um tribunal. Isto é apenas uma amostra: o que está realmente em causa com as novas moedas digitais dos bancos centrais (CBDC) é a separação de poderes tão cara à democracia. O dinheiro digital programável facilita todo um leque de decisões discricionárias que incidirão sobre a carteira de todo e qualquer cidadão.
Chegados aqui, a pergunta óbvia é se os cidadãos impolutos devem ter ou não a liberdade de usar as moedas que entenderem. Articular a linguagem da confiança deve ser um direito ou um privilégio? Claro que o poder político irá influenciar a resposta a esta pergunta, mas julgo que essa resposta escapará ao controlo hierárquico dada a ubiquidade digital.
Todas as tecnologias desenvolvidas ao longo da história têm servido para centralizar o poder e estratificar a sociedade através de intermediários capazes de as gerir de forma confiável (veja-se o papel dos bancos). Esta inovação tecnológica, pelo contrário, dispensa esses intermediários da confiança. Caso seja descentralizada, esta nova linguagem da verdade pode servir para emancipar os indivíduos e as comunidades a níveis nunca vistos, porque a transparência, rigor e segurança das transações tem o condão de gerar mais confiança entre as pessoas, assinalando um novo enquadramento ético da sociedade. No entanto, caso sejam centralizadas de forma autocrática, as redes blockchain servirão para destruir a privacidade e a liberdade.
Felizmente, esta nova linguagem é tão conveniente e competitiva que será a preferida pelo mercado. A única forma de impedir a sua adoção generalizada será planificando centralmente a economia, por exemplo decretando a proibição das moedas digitais descentralizadas. Infelizmente, tal pode mesmo vir a acontecer; os interesses instalados estão a promover a desinformação dos cidadãos (diabolizando criptomoedas como a Bitcoin), para garantir a exclusividade das CBDC. Tal monopólio trará consigo uma centralização de dados que concentrará terrivelmente o poder.
Embora ninguém possa “desinventar” a tecnologia blockchain, nem fazer a Internet retroceder para a sua fase anterior em que veiculava apenas informação, estamos formatados para aceitar a centralização do poder. Afinal, foi isso que a tecnologia nos trouxe durante 23 horas e 55 segundos do nosso dia imaginário. Assim, nestes derradeiros instantes, é natural que desconfiemos de uma tecnologia tão diferente das anteriores. Portanto, mesmo enquanto a fatura da centralização se revela insustentável, talvez sejamos levados a tolerar uma regulação financeira que impeça os cidadãos de adotar a única tecnologia que descentraliza as transações de valor. Pena é se assim for, porque este surpreendente progresso tecnológico deveria servir para deixar a sociedade florescer.
Está prestes a completar-se o giro dos ponteiros do nosso relógio. É praticamente meia-noite e desde há 5 segundos que a classe política poderia ter começado a trabalhar para eliminar o perigo de a espécie humana voltar à estaca zero. Nestes últimos instantes, é altura de não desperdiçar uma descentralização digital baseada no rigor matemático e nas leis do mercado. Não permitir que o mundo livre beneficie da auto-organização comunitária, fruto de uma ação coletiva impulsionada pela iniciativa individual (e não aquela planificada pela utopia coletivista), será o equivalente a morrer na praia.