Os contratos das Parcerias Público Privadas (PPPs) rodoviárias nacionais são dos mais complexos modelos que se podem estudar na área das PPPs mundiais. A introdução de portagens em infraestruturas planeadas e desenhadas para serem Sem Custos para UTilizadores (SCUTs) foi uma complexa inovação contratual de difícil execução.
Façamos uma brevíssima resenha histórica (com inúmeras simplificações): O Plano Rodoviário Nacional original é de 1945 e definia 3 classes de estradas. A gestão da rede cabia à Junta Autónoma de Estradas. Ainda hoje identificamos facilmente essa categorização na numeração das estradas nacionais. Em bom rigor, as 3 classes eram 4: A primeira classedividia-se numa 1ª classe premium de 1 a 18 e as estradas de 101 a 125 compreendiam o resto da classe. A N1 de Lisboa-Porto à cabeça ou a mítica N2, hoje tão em moda para roteiros turísticos, são facilmente identificáveis e a N125, no fim da numeração da 1ª classe é, ainda hoje, a espinha dorsal do Algarve. A 2ª classe inclui as estradas numeradas de 201 a 270, mas aqui já se torna mais difícil identificar uma estrada modelo. Eventualmente, o melhor exemplo será a N222, por ser ela mesmo um monumento no seu traçado e na beleza das paisagens na Região Duriense. Finalmente, a terceira classe, que compreendia as estradas numeradas de 302 a 398.
A numeração nacional, em cada classe, seguia uma lógica crescente de Norte a Sul e do Litoral para o Interior. A 101 desde Valença; a 125 acaba em Vila Real de Santo António. A 302 sai de Vila Nova de Cerveira; a 398 acaba em Tavira. Porém, esta lógica não se aplicava à classe premium.
Em 1985, o Plano Rodoviário Nacional foi revisto e acrescentaram-se os conceitos de Itinerário Principal e de Complementar (IP e IC). No entanto, estamos já numa era em que a concessão da Brisa era uma realidade e a espinha dorsal do Plano passaram a ser as autoestradas. Assim, as rodovias nacionais passavam por três tipos de infraestrutura: a concessão de autoestradas da Brisa, devidamente portajadas, com a pressão para a conclusão da A1 a ser um desígnio nacional; a rede de IP e IC a completar os acessos a zonas interiores do País, designadamente a urgência da construção do IP4 do Porto a Bragança e do IP5 de Aveiro a Vilar Formoso; e a rede de estradas nacional herdadas do plano de 1945. A consequência deste esforço colossal feito nos primeiros anos da adesão foi a rápida conclusão da rede de autoestradas da Brisa, designadamente a conclusão da A1 em 1991, ligando finalmente o Porto e Lisboa, a A2, entre Lisboa e o Algarve, a A3 do Porto a Braga (mais tarde a Valença) e a A5 de Lisboa a Cascais.
A rede de IPs teve como consequência um início de ligação rápida a Espanha, de crítica importância, mas com características que aumentaram imenso a sinistralidade nas estradas. Olhar para os dados de sinistralidade nas décadas de 80 e 90 é absolutamente aterrador.
Havia por isso espaço para uma terceira revolução rodoviária e ela surge logo em 1998, com o Plano Rodoviário Nacional 2000, que acrescenta as primeiras das famosas SCUTs em regime de PPPs. Entre 1999 e 2004, a JAE é também alvo de ajustamentos, até estabilizar como entidade empresarial do Estado, com a designação Estradas de Portugal.
Numa abordagem coerente com os tempos de então, optou-se, através de contratos em PPP, por construir uma rede de autoestradas de elevada qualidade que permitisse a rápida e segura mobilidade no País todo, sem necessariamente onerar os utilizadores. Os contratos determinavam a responsabilidade dos privados de financiar e construir rapidamente as infraestruturas, sendo remunerados por utilização das mesmas, sem encargos diretos para os utilizadores. Ou seja, media-se a utilização, mas quem pagava o uso era o Estado e não o utente.
O sucesso na construção foi exemplar. Rapidamente, o País viu-se dotado de uma rede rodoviária que passou a ser padrão mundial, com ligações seguras a inúmeros pontos do interior do País. Os custos desta rede foram elevados, porque a utilização foi intensiva, mas os benefícios para a integração territorial começaram também a ser sentidos imediatamente. Um registo importantíssimo foi a quebra brutal da sinistralidade rodoviária e literalmente centenas de vidas de portugueses foram poupadas. O benefício económico sentido foi também enorme, com pessoas, bens e serviços a chegarem mais depressa ao interior. Um exemplo disso é encontrarmos turistas em qualquer ponto do País.
Menos positivo desta terceira revolução foi o adiar de alternativas de mobilidade (a aposta na ferrovia foi preterida durante décadas). Outra dimensão mais política, foram os governos verem na construção rodoviária uma forma bem keynesiana de promoção do crescimento económico no curto prazo, remetendo as consequências orçamentais para o médio e longo prazo.
Chegamos rapidamente às crises das finanças públicas… A sustentabilidade das finanças públicas dependia agora da introdução de receitas associadas a estas infraestruturas. Para evitar alterar demasiado nos contratos, o Estado optou por manter o pagamento aos privados num registo de disponibilidade próximo do anteriormente contratado, mas introduzindo portagens nas SCUTs (que assim passaram a ComCUTS), sendo que as portagens revertiam para o Estado e não para as concessionárias. Basicamente, o Estado assumia o risco de procura e atenuava a despesa a pagar. Cabia às concessionárias montar a estrutura de cobrança em estradas que não estavam de todo pensadas para o efeito. Como consequência, o Estado cobra as portagens, mas o utente acha que está a pagar às concessionárias.
Acertar o modelo de cobrança de portagens em infraestruturas onde não era suposto haver cobranças foi uma tarefa recheada de ambiguidades. Desde logo, a quebra na procura foi acentuadíssima. Para quem viva no interior, os custos foram sentidos de forma severa. Para as concessionárias, que ficaram a cargo da cobrança, a imagem pública ficou devastada. Acrescem situações de alguma falta de lógica como o que fazer com os veículos de matrícula estrangeira, designadamente os espanhóis, ou os emigrantes. A burocracia de pagamento para quem não disponha de Via Verde tornou-se enorme, mas a situação das finanças públicas impedia que se pudesse mexer nestes novos modelos.
Pelo caminho renegociaram-se os contratos, reduzindo o nível de serviço para baixar os pagamentos às concessionárias. As poupanças foram consideráveis, mas o modelo sofria agora imenso com as quebras de procura.
A determinada altura, introduziram-se descontos, para atenuar o custo a quem vivia no interior. Com o passar dos anos esses descontos tornaram-se mais relevantes e este ano – aliás, por sugestão da oposição – esses descontos passaram a 50%.
Acontece que os descontos definidos pelo Governo não pareceram nada claros e estão em contraciclo com o que sucede em outros países. A ideia dos descontos é ambígua: por um lado validam um modelo que se aproxima das SCUTs, ou, pelo menos, Sem-Metade-dos-CUTs; por outro lado, numa altura em que se promovem outras alternativas de mobilidade, incentiva a utilização do automóvel e da rodovia, onde o uso de elétricos não é viável de forma eficiente. Em Espanha, país conhecido por ter uma extensa rede de autoestradas não portajadas, as portagens estão a ser introduzidas precisamente para desestimular o uso do automóvel.
Em suma, a situação é complicada, e denota muita indefinição sobre o que fazer com estas infraestruturas rodoviárias nos próximos tempos. Os contratos de concessão destas infraestruturas aproximam-se do seu fim, e esta seria altura para uma reorganização do Plano Rodoviário Nacional, um repensar sobre a mobilidade no País apostando no que existe, repensando como criar soluções que promovam uma utilização ambientalmente responsável da mobilidade automóvel, ao mesmo tempo que se continua a promover a integração territorial nacional. Articular com a ferrovia parece importante e interessante, mas porventura apostar na ciência e na tecnologia para usar as rodovias com novas soluções de transporte de pessoas e bens pode ser algo a desafiar as universidades e centros de investigação nacionais.
É crítico entender que estas infraestruturas foram importantíssimas para o desenvolvimento integral do País e se hoje Portugal tem algum nível de integração regional deve-se muito a esta malha de rodovias que permitem que haja, ainda assim, qualidade de vida em zonas mais recônditas, para onde se consegue ir e vir no mesmo dia.
É urgente o debate sobre o que fazer na mobilidade deixe de ser assunto ideológico e passe a ser um tema promotor do desenvolvimento integrado do território. É urgente o debate ser feito com responsabilidade.