Há lutas difíceis… Uma das mais difíceis, principalmente numa era em que a digitalização já faz parte do nosso dia-a-dia, é o combate contra a desinformação. As ideias feitas (muitas vezes sem qualquer fundamento) sobre o meio rural, geram contrariedades que demoram tempo a ultrapassar… contrariedades exacerbadas por uma quase diária divulgação de pressupostos turvos sobre a agricultura nacional que, potenciados pela rede social em que vivemos, podem ser difíceis de desmentir.

Foi isto que encontrei num recente artigo publicado no Agência Lusa. Na peça podemos encontrar declarações do Professor Joaquim Poças Martins que não se coadunam com o real panorama nacional. Dizer que “a água […] é gratuita ou demasiado barata”, que “como [o agricultor] não paga por ela, usa demais” ou que “o que há a fazer é rentabilizar a agricultura” são afirmações perigosas que carecem de ser contraditas. Já num anterior artigo de opinião publicado no Observador tentei combater esta forma de pensar; contudo, tentemos refletir um pouco mais sobre estas questões, mesmo correndo o risco de parecer repetitivo.

Será a água “demasiado barata”?

Como ponto de partida temos que encarar a água como um outro qualquer fator de produção, tão fundamental como uma semente, o solo, ou a mão que o trabalha. E como qualquer outro fator, a água tem um custo. E será “barato”?

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Olhemos para a cultura do milho (escolhido também como exemplo na peça original). O milho tem, em Portugal, uma conta de cultura (onde se incluem todos os custos de produção) a rondar os 2200 euros por hectare. Com este “investimento” consigo alcançar uma produção na ordem das 16,5 toneladas por hectare, para a qual são precisos cerca de 7000 metros cúbicos de água. Água essa, que dada a ausência de precipitação nos meses de verão, é dada de forma artificial através de um sistema de rega. Se a minha exploração estiver inserida no perímetro de rega coletivo, em que a água é entregue em pressão (tomemos como exemplo o Alqueva), cada metro cúbico dessa água que eu tenho que usar tem um custo de 0,06 euros. Os ditos 7000 metros cúbicos custarão cerca de 420 euros – cerca de 20% do custo total de produção.

Mas poderão dizer: muitos dos agricultores vão buscar a sua água ao subsolo. É verdade. Mas essa também tem um custo! Mesmo que marginalizemos a Taxa de Recursos Hídricos, cada metro cúbico que eu queira extrair do subsolo exige energia, energia essa que tem um custo (cada vez mais elevado…). Se pensarmos novamente no milho, o custo dessa energia pode ascender aos 600 euros por hectare, cerca de 28% dos custos globais.

A água é barata? Não me parece. Não podemos pensar que um recurso é barato quando o seu peso representa um quarto da produção de um determinado bem.

Será que agricultura “usa demais” a água?

Antes de mais, importa refletir sobre a realidade nacional. É verdade que a agricultura usa mais de 70% da água disponível; este número contrasta com os da Alemanha onde apenas 2% da água é utilizada pela agricultura. Mas há uma razão. Dadas as nossas condições edafo-climáticas, sem água (e sem regadio) é impossível garantir à agricultura nacional resultados economicamente viáveis (já falarei sobre este ponto mais à frente) que garantam a sustentabilidade económico-financeira do empresário agrícola. Sem essa sustentabilidade, será incontornável o impacto negativo sobre as populações e sobre o território. A influência do nosso clima mediterrânico é particularmente impactante sobre a agricultura. Se tomarmos como exemplo a região de Beja, vulgarmente tida como referência para a região Alentejana, é notório o défice de água nos meses de maio a setembro, sendo a evapotranspiração (cerca de 1200 mm) largamente superior à precipitação (aproximadamente 500 mm).

Tendo que conviver com um clima em mudança, o setor agrícola nacional tem tentando ser menos “consumidor”. Dados apurados pela FENAREG – Federação Nacional de Regantes de Portugal (2019) apontam para uma redução significativa nos últimos 50 anos: em 1960 o consumo de água por hectare era de cerca de 15 000 m3; já em 2014 era de 6600 m3. Faltam apurar dados mais recentes, mas se olharmos para o regadio de Alqueva, em pleno Alentejo, onde são produzidas culturas como o olival, amendoal, vinha e milho, em 2020 o consumo médio era de “apenas” 2700 m3/ha – muito longe do que encontrávamos 5 décadas antes.

Esta redução foi, em grande parte, possível por todo um esforço do setor para que a inovação da gestão da rega seja base da atividade agrícola. O mote é “aplicar a água no momento certo, na quantidade certa, da maneira mais eficiente e uniforme possível”. Para tal, os agricultores realizam toda e qualquer tarefa de uma forma otimizada, observando e registando os dados agronómicos, climáticos e pedológicos da exploração, recorrendo a ferramentas de apoio à decisão, a metodologias capazes de realizar as operações de forma adaptada à variabilidade da parcela e a sistemas de rega mais eficientes. Isto permite ao agricultor regante aplicar apenas água estritamente indispensável, no local certo e no momento oportuno, tornando-se cada vez mais eficiente.

Usamos demasiada água? Longe disso. Usamos apenas aquela que é estritamente necessária para alcançar as produtividades que garantam a continuidade da atividade agrícola.

Podemos ser mais conservadores? Talvez… mas teremos que obrigatoriamente garantir que criamos as condições para manter a rentabilidade das explorações.

Será que nos falta “rentabilizar a agricultura”?

Tentemos, antes de mais, entender a importância do regadio para a Agricultura Portuguesa. Em 2019, segundo os dados do mais recente Recenseamento Agrícola (RA 2019), a Superfície Agrícola Utilizada (SAU) era de, aproximadamente, 3,96 milhões de hectares. Nesse ano, a Superfície Irrigável era de 630 517 hectares (cerca de 16% da SAU), enquanto a Superfície Regada foi de 566 204 hectares. Contudo, é importante referir que o regadio é prática adotada em cerca de 45% das explorações existentes em Portugal; no entanto, as explorações onde o regadio é predominante representam apenas 18% do total. De maior importância é o impacto do regadio no valor da produção gerado nas explorações agrícolas. De acordo com o RA 2019, um hectare exclusivamente de sequeiro gera um valor de 997 euros contrastando com o valor de 5509 euros criado por um hectare predominantemente de regadio.

Pensemos no conceito de eficiência, que, de forma simples, pode ser definida como a razão entre a saída de produto (output) pela entrada de fator ou fatores de produção (inputs) – um dos quais a água. Mais produção por unidade de entrada de fator(es) reflete uma eficiência relativamente maior. Se a maior produção possível por unidade de fator for atingida, um estado de eficiência absoluta, ou ótima, foi alcançado e não é possível tornar-se mais eficiente sem novas tecnologias ou outras mudanças no processo de produção. Apliquemos, pois, este conceito aos dados referidos anteriormente. O Valor de Produção Padrão Total (VPPT) por hectare de SAU é em média de 997 euros no sequeiro e de 5 509 euros no regadio. Se considerarmos que a precipitação média a rondar os 500 mm, e uma dotação média de rega de 700 mm, chegaremos a eficiências de 997/500 = 1,994 €/mm e 5 509/(500+700) = 4,591 €/mm para sequeiro e regadio, respetivamente. Ou seja, a rentabilidade económica do fator água de rega é 2,3 vezes maior no regadio por comparação com o sequeiro. Isto prova que uma adoção do regadio – ou seja, usar água – melhora a rentabilidade económica da agricultura. Não é que a agricultura de sequeiro não seja rentável… Mas a riqueza que gera, o dinamismo que cria, a população que fixa, não é comparável ao que podemos alcançar por força do regadio.

Quer isto dizer que não devemos rentabilizar ainda mais a agricultura? Nem pensar… mas temos que assumir que o caminho até agora percorrido já trouxe um ganho mais que evidente.