Há determinadas ideias que regularmente voltam à sociedade portuguesa. O método é sempre o mesmo: aparecem num artigo de opinião de um notável, fazem o seu caminho e acabam esquecidas, seja pela sua impraticabilidade ou por serem inaceitáveis. Mas passado um tempo, ei-las de volta, promovidas pelos mesmos que as veem como excelentes para rapidamente resolver problemas complexos. É assim com a ideia do regresso do serviço militar obrigatório (SMO).
O SMO terminou em 2004 e seguindo as tendências europeias, transformou por completo a forma como passaram a ser geridos os recursos humanos ao serviço das forças armadas (FFAA). Transitámos de um modelo de serviço militar baseado na conscrição para um modelo assente no voluntariado.
Mas o mundo mudou. A guerra na Ucrânia estimulou os Estados europeus a aumentarem os seus orçamentos de defesa. Os países europeus anunciaram um aumento total com o investimento em Defesa e a UE deu passos importantes no apoio aos ucranianos, fornecendo apoio financeiros em assistência militar, provando que está disposta a suportar ampla assistência aos seus parceiros. Caso disso é a apresentação no início deste mês da primeira estratégia industrial de defesa da União Europeia.
Esta mudança de atitude não apaga, no entanto, o longo período de desinteresse dos Estados-membros após a crise económica e financeira de 2007-2008. Ter novamente a guerra “à porta” levou a uma reorientação na estratégia de investimento dos países europeus no capítulo da defesa e segurança.
Um dos desafios é que, para acomodar esta reorientação estratégica, são necessários militares, algo que o continuado desinvestimento nas forças armadas desincentivou, estagnando os modelos de recrutamento e retenção de militares e diminuindo significativamente o seu contingente nos países europeus. Portugal não foi exceção.
Mas não é só um problema de quantidade. É também de competências, de especialização. A guerra também mudou. Os conflitos modernos envolvem cada vez mais operações ciber, incluindo ataques cibernéticos aos sistemas de defesa, às infraestruturas críticas e às redes de comunicação. Os drones e os veículos terrestres autónomos desempenham um papel crescente em operações militares, bem como a robótica militar e a Inteligência Artificial. Os sistemas de armas são cada vez mais complexos e intensivos em eletrónica, comunicações e computação. Formar e manter os militares que operam estes sistemas e que têm estas capacidades é muitíssimo oneroso e leva tempo, muito tempo.
É neste contexto de exigências que devemos debater como aumentar o contingente das nossas FFAA, valorizar a carreira militar, capacitar e reter indivíduos altamente especializados. Servir os ramos não pode ser visto unicamente como um serviço à Nação, mas também como uma opção profissional atrativa.
Ação absolutamente necessária é a valorização das carreiras e dos vencimentos dos militares. Olhar às necessidades materiais é crucial para aumentar a atratividade e a retenção dos elementos das FFAA. De que serve ter os meios, cada vez mais exigentes na sua operação, se não tivermos homens e mulheres motivados para os operar? Se não tivermos quem esteja capacitado para o fazer, devidamente remunerado e valorizado?
É um facto que são necessárias soluções para aumentar a quantidade e competências dos nossos militares, mas soluções que não passem por reativar o vetusto serviço militar obrigatório.
Não temos qualquer capacidade logística e financeira de integrar, capacitar, dar condições de alojamento e alimentação no espaço de quatro meses ou um ano à quantidade de mancebos necessários a um rácio razoável de oficiais, sargentos e praças. Já se pensou no impacto na economia que tal medida teria para Portugal? Muitos quartéis teriam de ser renovados, ampliados ou mesmo construídos de raiz, seriam necessários mais formadores militares, mais equipamento militar de treino e simulação, milhares de jovens atrasariam a sua entrada no mercado de trabalho com reflexos nas suas vidas e na economia nacional. A reintrodução do serviço militar obrigatório seria muitíssimo cara e só teria (duvidosos) resultados a longo prazo.
Deixo para o fim o mais importante e que vai além destes aspetos operacionais. Em 2024, numa democracia consolidada com a portuguesa, é eticamente inaceitável que por meio da coerção estatal se obrigue a que jovens abdiquem da sua autonomia e liberdade individual e sirvam o estado nas condições e valores que esse mesmo estado entenda como as adequadas. Duvido muito que obrigar alguém a fazer o que não quer seja o melhor caminho para aumentar a coesão entre portugueses, preparando-os para promover os valores de partilha, cooperação e solidariedade entre todos. A entrada nas FFAA ou é voluntária ou é inaceitável.
A solução, reafirmo, estará sempre na valorização das carreiras e dos vencimentos dos militares, em conjunto com outras medidas como; o aumento da idade máxima de candidatura para as FFAA ou mesmo a sua eliminação (como nos Estados Unidos da América); a equiparação da FFAA às forças de segurança, mitigando a drenagem de recursos devido aos desequilíbrios de rendimento; a aposta na reativação dos cursos técnico/profissionais das Forças Armadas, capazes de dar competências profissionais na vida civil pós militar; o incentivo à entrada de mais mulheres nas FFAA, com políticas de licença de maternidade e paternidade que permitam que mulheres e homens equilibrem as responsabilidades familiares com a carreira militar ou o recrutamento de não nacionais para as nossas Forças Armadas. Este será necessariamente o caminho.
Em síntese, o debate sobre uma enésima nova versão do serviço militar obrigatório é contraproducente. Afasta mais do que atrai. Em vez disso, devemos investir em reformas estruturais a fim de fortalecer a defesa nacional com um exército totalmente profissional, bem capacitado e equipado, valorizado e voluntário.