A continuada guerra na Ucrânia e os recentes e dramáticos acontecimentos em Israel e em Gaza tomaram conta das noticias diárias, fazendo parecer longínquo e irrelevante o facto de pelo menos 11.300 pessoas terem morrido e cerca de 40 000 terem sido deslocadas para outros locais devido às inundações no leste da Líbia, na cidade de Derna, no dia 10 de Setembro de 2023. De acordo com os últimos números oficiais esta é a maior tragédia de sempre em África resultado de inundações.

A devastação de Derna é a ilustração da convergência entre os fenómenos naturais extremos, acentuados pelas alterações climáticas e a sua relação com o (inexistente) governo de um país.

Recuperando os acontecimentos, a tempestade Daniel, que já tinha causado destruição na Grécia, orientou-se para sudoeste sobre o Mar Mediterrâneo, que registou nessa semana as temperaturas mais elevadas do ano. A água mais quente potenciou a tempestade, criando um ciclone tropical mediterrâneo com maior potencial de transporte de humidade. Depois de atingir a costa nordeste da Líbia, a precipitação atingiu o pico em 10 de Setembro de 2023, com um valor recorde de 414 mm em comparação com a média mensal de menos de 2 mm !

O ciclone tropical mediterrâneo – a que damos o nome de Medicane – fortaleceu-se ao atravessar as águas excecionalmente quentes deste mar, antes de se verificarem as chuvas torrenciais na Líbia. Num país sem rios permanentes, os uádi desviaram rapidamente o fluxo de água para as montanhas de al-Jabal al-Akhḍar e pelo vale em direção a Derna, destruindo duas barragens mal conservadas e tendo a torrente inundado a cidade.

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A catástrofe tem várias dimensões, sendo a das alterações climáticas particularmente evidente. Os eventos climáticos extremos, com maior intensidade e impacto, tornaram-se mais regulares no Mediterrâneo e no Norte de África, e embora estes fenómenos tenham amplitude mundial, há uma enorme diferença entre a forma como o mundo mais desenvolvido e o mundo em desenvolvimento consegue responder a estes desafios.

Neste caso, os registos meteorológicos indicaram um período prolongado de precipitação elevada na região do Mediterrâneo durante pelo menos uma semana. Não tendo a Líbia um sistema de alerta precoce, a situação tornou-se impossível de ser antecipada e gerida. Tal sistema poderia ter levado a medidas apropriadas que teriam reduzido o número de vítimas e danos.

Uma das conclusões que retiramos desta catástrofe é a necessidade de infraestruturas adaptadas e bem conservadas para mitigar os impactos climáticos e de outras catástrofes potenciais. As duas barragens a montante da cidade de Derna foram construídas para controlar as cheias e fornecer água para irrigação, mas nunca se antecipou que tais inimagináveis volumes de precipitação pudessem ocorrer num tão curto espaço de tempo. A falta de reforço estrutural e de manutenção por incapacidade política levou, apesar dos repetidos avisos de muitos técnicos líbios e internacionais, ao seu colapso.

Outra das conclusões sobre o ocorrido em Derna tem a ver com as consequências da intervenção na Líbia em 2011 que levou à eliminação do ditador Gaddafi e onde desde 2014, por falta de uma política continuada de recuperação das estruturas institucionais e legais do país pela comunidade internacional, existe uma guerra civil com dois governos concorrentes – o Governo de Unidade Nacional, com sede em Trípoli, apoiado pela ONU e pela Turquia, com o primeiro-ministro Abdul Hamid al-Dbeibeh, e o governo rival em Benghazi, liderado por Osama Hamad, apoiado pelo General Khalifa Haftar e suportado pela Rússia e pelo Egipto, entre outros. Esta divisão mina a governação do país e dificultou a que a ajuda internacional chegasse às pessoas afetadas pelas cheias.

Hoje, na Líbia, coexistem inúmeras fações tribais, grupos políticos, forças ideológicas e grupos criminosos movidos por lógicas muito distintas num ecossistema estratégico de elevada complexidade. O número de grupos armados na Líbia tem vindo a aumentar nos últimos anos, sendo observáveis frequentes realinhamentos das alianças celebradas entre fações armadas e fraturas constantes no interior dos grupos armados.

Há, no entanto, aspetos no panorama líbio que reúnem consenso, como a ideia de que existe uma crescente predação de recursos, com influência determinante de estados europeus, da Rússia, da Turquia e mesmo dos EUA. De facto, ao longo dos últimos anos assistimos a uma criminalização dos grupos armados, com diluição do seu carácter político e acentuação do carácter predatório das suas ações a que não é alheia a abundância de armas para a população. Existem redes e grupos profundamente enraizados na sociedade, vivendo e proliferando numa economia de guerra lutando por recursos económicos e poder político num estado atingido por um vazio institucional e ausência de um árbitro central com preponderância de força. Não há uma fação forte o suficiente para coagir ou se impor sobre todos os outros.

Em síntese, não existe nenhuma figura política de dimensão nacional ou estrutura institucional capaz de unificar o povo líbio sobre a lei e há fortes resistências por parte dos atores locais à alteração do status quo em razão dos lucros gerados pela economia de guerra. Não existe uma estrutura estatal na Líbia e a administração do estado está ausente da vida das pessoas.

É neste contexto que a tragédia de Derna se torna ainda mais relevante, sendo o seu impacto de médio e longo prazo muito maior que a tragédia humana a que todos assistimos. Com mais de 40 000 deslocados, num país em guerra civil e com uma economia destroçada, é expectável que venhamos a assistir ao aumento de migrantes no Mediterrâneo com destino à Europa.

Em 2015, a chegada massiva de refugiados de guerra e migrantes económicos à Europa, com outra cultura, outros códigos e outras linguagens, procurando empregos de enorme precaridade ou que não existiam, e não tendo qualquer rede de segurança, potenciaram a intervenção estatal no apoio e suporte a estes migrantes. As tensões entre os residentes e os recém-chegados – num contexto europeu de crise económica e social – muitos vezes amplificadas pela comunicação social e políticos populistas, promoveram conflitos de ordem interna em muitos países europeus difíceis de gerir.

Os impactos desta instabilidade ao nível migratório são conhecidos; a guerra civil da Líbia contribuiu para a crise migratória que fortaleceu os partidos populistas de direita radical em toda a Europa.

A Líbia tornou-se num centro atraente para combatentes, contrabandistas de armas e agora grupos de tráfico de droga que operam em toda a África. O país tornou-se também um ariete para a Rússia na sua campanha para ganhar influência em África, permitindo que Moscovo controle a rota de energia para a Europa e estabeleça bases militares a poucas centenas de quilómetros da base da NATO de Sigonella, na Sicília.

As repercussões negativas das más decisões perduram longamente no tempo. Os sempre imponderáveis resultados de uma intervenção militar, mesmo humanitária, e a fragilidade continuada do “estado” líbio, praticamente deixado ao abandono pelas instituições internacionais, com os respetivos impactos negativos são disso exemplo. As alterações climáticas são mais um e novo elemento deste interconectado conjunto de causas que afetam a Líbia e que têm um enorme potencial disruptivo para a Europa.