Ninguém conseguiu definir até hoje a sensação de marcar golo, o tremor incontido que desponta quando a bola passa a linha que decide entre a bonança e a tempestade, o êxito e a ilusão. E o instante até se repete vezes sem conta, não importa o lugar: num estádio babilónico repleno de adeptos e anseios, ou numa planura solitária com balizas de pedras roubadas ao caminho, cenário místico de uma infância feliz.

O momento, tão intangível como vulcânico, não se transforma facilmente em palavras. Podemos descrever cidades, paisagens, quimeras, utopias. Quiçá até com pormenores acidentais e subtilezas proféticas, sonhando ser Victor Hugo ou Nabokov pelo tempo infinito de um suspiro. Mais difícil será, porém, traduzir um sentimento que voluteia como tornado e se infiltra em toda a parte como a chuva das monções.

Perante a natureza existencial do assunto, o escritor Eduardo Galeano — que acreditava sermos feitos de histórias, não de átomos — confessou ter nascido a gritar «golo», como aliás todos os seus compatriotas. A imagem foi decerto a solução encontrada para combater o cepticismo de quem não compreendia o seu amor ao futebol. Assim se libertou da obrigação de prestar contas e de testemunhar, a bel-prazer dos inquisidores, sobre assuntos encarcerados no seu peito. Conquistou, ao invés, o direito vitalício de peregrinar pelo mundo, um mendigo de chapéu na mão, como revela no magnífico Futebol ao Sol e à Sombra (Antígona). O uruguaio não pedia taças nem vitórias. Suplicava tão-só pela beleza purificadora de uma boa jogada, o Santo Graal da «grande missa pagã».

Há um lado insondável no futebol. Os ingleses cunharam o nome e as regras, mas a atracção cinética perde-se de vista na linha do tempo. As raízes mais profundas conduzem-nos à China milenar e ao cuju, jogo praticado com uma bola revestida de couro e insuflada de penas. A obra Zhan Guo Ce, acervo de textos compilados entre os séculos I e III antes de Cristo, acolhe a mais antiga das referências históricas. Os escritos ancestrais, de autores desconhecidos, versam sobre diplomacia, guerra e política, e evocação do cuju não espanta: além de passatempo, praticava-se em treinos militares, para fortalecimento dos soldados.

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Comprovado por vestígios arqueológicos, nos quais se vislumbram representações de outras actividades lúdicas com bola, o jogo floresceu na dinastia Han, que vigorou de 206 a. C. a 220 d. C., fortemente marcada pela criatividade e sofisticação culturais. Kao-tzu, o primeiro imperador Han, de origens humildes e profundamente influenciado pelas virtudes de Confúcio, como a justeza e a compaixão, construiu inclusive um campo no seu magnificente palácio para esse fim.

A tradição chinesa influenciou o kemari, que irrompeu no Japão durante o período Heian (794-1185), politicamente caracterizado pela ascensão dos samurais, guardiães da arte do sabre e leais servidores, para quem o nome e a honra jamais feneciam, ao contrário da vida. Com oito jogadores, dois em cada canto do terreno quadrangular, o desporto consistia em dar toques na bola, num desafio constante à gravidade newtoniana. Considerava-se ideal uma sucessão de três movimentos: um para recepção e domínio, outro para que o esférico sobrelevasse a cabeça, e um passe epilogar com travo a glória e libertação. A tríade de impulsos malabares levaria o ritual à eternidade, a menos que um salteador insurgente, despojando à traição o adversário, sentasse o destino numa finta à Di Stéfano, a bola submissa cravada no pé.

Alguns sinais genealógicos derivam do mundo heleno-romano. Na Grécia antiga, surgiu o episkyros, traduzível por «bola comum». Neste jogo de mãos e pés, defrontavam-se duas equipas, doze a catorze elementos cada, num campo sem balizas e dividido por uma linha horizontal denominada skyros. No Império Romano, popularizou-se o harpastum, evocado por Cláudio Galeno no tratado On Exercise with a Small Ball, escrito no século II. O preeminente cientista e filósofo, médico da corte de Marco Aurélio, legou à humanidade conhecimentos essenciais sobre anatomia, dramaturgia, fisiologia, gramática e retórica. Notabilizou-se ainda por treinar gladiadores. O imperador Júlio César terá sido dos mais ilustres praticantes deste desporto, cujo objectivo era fazer que a bola, pequena e maciça, ultrapassasse a linha de fundo do terreno contrário. Alguém estranharia se Baggio, Del Piero, Maldini, Pirlo, Rossi e Zoff descendessem de ídolos desta modalidade milenar?

Pelas frestas da mitologia, vemos ainda a bela Nausíacaa — filha de Alcínoo, rei dos Feaces, povo marinheiro de Esquéria, ilha com navios mágicos e árvores frutuosas — a brincar com uma bola nas margens de um rio ensolarado. Nesse cenário epopeico, a jovem princesa, de nome ancorado em náutica sílaba, tributo à linhagem de navegadores, encontrou Ulisses, ferido e sem roupa, nas sombras bucólicas de um bosque, depois de naufragar numa tempestade provocada por Posídon, deus supremo dos mares.

Homero narra o episódio na Odisseia (Relógio D’Água): «[sic] Depois que Nausíacaa e as escravas se deleitaram com a comida, / despiram os véus e começaram a brincar com uma bola. / Foi Nausíacaa de alvos braços que deu início ao canto. / […] A princesa atirou a bola na direção de uma das escravas; / mas nela não acertou: a bola foi parar ao fundo redemoinho. / Então gritaram todas; e assim acordou o divino Odisseu [nome grego do herói].»

O futebol moderno só nasceu em Inglaterra na era vitoriana. Não custa, todavia, imaginar que, nas expedições à Britânia, as milícias romanas tenham levado uma bola pendurada na armadura de um centurião, ou servilmente pregada às cáligas de um legionário centrocampista: um camisola dez ou um abnegado carregador de pianos.

Uma versão anárquica do jogo raiou nos séculos XIV e XV em terras de Sua Majestade. Os desafios ocorriam no Entrudo ou na Páscoa, talvez pela ligação a ritos gentios de sagração da vida nos alvores da Primavera. À míngua de regras, surdiam violentos tumultos, especialmente entre aldeias rivais, o que levou Eduardo II a banir a actividade plebeia em 1314. Debalde se repetiu a proibição em reinados posteriores. As contendas perduraram, e nem a sublime elegância renascentista, que inculcou certa moderação no calcio florentino, criado no século XVI e popular entre jovens aristocratas, inverteria o caos.

Shakespeare não previu a reviravolta de Bobby Charlton, Bobby Moore, Gary Lineker e Paul Scholes. Tão-pouco imaginou que nasceriam Zico e Jairzinho além-mar. Confiou nos seus olhos e quase ditou sentença de morte. No Rei Lear (Relógio D’Água), escrito no dealbar do século XVII, entre Hamlet e Macbeth, o fiel conde de Kent, pretendendo vexar Osvaldo, mordomo de Goneril, filha do lendário monarca, atira com evidente sanguinolência: «Tu, indecente jogador de futebol.»

Mais tarde, a desilusão gotejaria na pena de George Orwell, nada comovido com o lado fero e bravio da competição, ideia vertida em The Sporting Spirit, de 1945. Tivesse o inglês visto Pelé, que ainda fintava a desdita nos buracos da rua, com acrobacias e feitiços de criança, e o desencanto seria paixão. Que o diga Vinicius de Moraes, prostrado aos pés de Garrincha, «o anjo das pernas tornas». Ou Javier Marías, que trazia nas veias Borges, Cervantes, Faulkner, Proust, e ainda os deuses do Real Madrid, que lhe devolviam semanalmente a infância.

A bola sobressaiu do firmamento e continuou a percorrer a Via Láctea: em espiral ou linha recta, no sentido do tempo ou em contramão. Planou de Lima a Casablanca, de Istambul a Yokohama, de Belo Horizonte a Calcutá. Deteve-se em Buenos Aires para espreitar La Bombonera. No Rio de Janeiro, viu o Maracanã ao pôr-do-sol. Debruçada no Vesúvio, não quis saber de Ischia nem Capri, mas desceu com o fogo à cidade e emboscou Maradona no San Paolo. E sob poética invernia em Liverpool, no cálido aconchego de You’ll Never Walk Alone, aprendeu que o destino escolta a vida, mas não dá ordens ao coração.

Nem a merencória sombra do poente oculta a bola perdida numa estrada, ou cativa num banco de jardim. Quando alguém passa, é noite de futebol.