A desistência da ginasta norte-americana Simone Biles, por razões de saúde mental, lança uma mensagem muito importante sobre a relação desta com o desporto de alta competição e abre o leque a uma conversa, e a uma premissa, que é essencial neste ramo – nunca se perde verdadeiramente no desporto quando se ganha na vida – e Biles ganhou na vida.

Os Jogos Olímpicos são sempre palco de algum dos maiores destaques e momentos do desporto a nível mundial. Ainda que, normalmente, estes se cinjam ao desporto, não são raras as vezes em que, para o bem e para o mal, os extrapolam e lançam para a sociedade civil temas que são, normalmente, contíguos à competição. Nesta edição é a desistência de Biles que faz manchetes em todo o Mundo, mas divide a sociedade, de forma triste, entre aqueles que consideram este um ato de heroísmo da parte da atleta norte-americana e os que consideram que este é uma fuga da competição e do desafio de renovar os títulos do Rio 2016.

Não faço juízos de valor sobre a vida de Biles, mas começo por constatar alguns factos importantes e que podem, eventualmente, contextualizar esta decisão. Nascida numa família pobre e criada em parte num orfanato, a atleta americana conseguiu superar as circunstâncias difíceis da sua infância e, posteriormente, a convivência com um treinador condenado por crimes sexuais, e triunfar a um nível histórico e sem precedentes na ginástica artística, vencendo sucessivas medalhas tanto em campeonatos mundiais da competição como em Jogos Olímpicos. Com isto, não quero dizer que esteja imune a críticas, naturalmente. Mas o seu ato deveria, consensualmente, ser visto como um ato de coragem e de bravura, não um de cobardia ou de fuga à competição, como tem sido afirmado por parte da sociedade norte-americana e mundial.

Nunca se perde no desporto quando se ganha na vida – e Biles ganhou ao preservar a sua própria condição enquanto pessoa, ao invés de medalhada nesta ou naquela competição, e ganhou na coragem de assumir as suas limitações enquanto ser humano que é. Em nada se coloca a capacidade da ginasta enquanto desportista, que apesar das críticas até aparentava estar dentro dos trâmites de qualidade que tão ansiosamente se exige àquela que é considerada por muitos a melhor ginasta de sempre. Biles, sobretudo, venceu na competição da vida – e o triste reflexo de uma sociedade, como li, não é o de assumir essa derrota no desporto e ser vangloriada por isso, é o de assumir uma vitória na sua vida que, como disse no título, supera todas as restantes e ser vilipendiada por aqueles que consideram este um ato de cobardia.

Honestamente, espero que a ginasta vença no estrado da vida para voltar a triunfar nas barras e nas argolas no pavilhão olímpico, como tem vindo a fazer até aqui. Até lá, considero (não esperando) que se deva humanizar mais o desporto – que Phelps seja mais conhecido como Michael do que como o vencedor de 23 ouros durante a sua carreira, ou que Mamede seja mais conhecido como Fernando do que como o eterno vencedor apenas fora das Olimpíadas. É a nossa obrigação como fãs, como eu também sou, do desporto, mas também como sociedade como um todo. Mas não me iludo – há um caminho longo a percorrer nessa área, como é atestado pelas mais variadas reações que se fazem sentir a esta desistência.

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