A política não saiu de Rui Rio e, verdadeiramente, pelo cargo que ocupou, Rui Rio nunca sairá definitivamente da política. As mais recentes buscas de que o ex-autarca da Câmara Municipal do Porto foi alvo, por solicitação do Ministério Público e autorização do juiz de instrução criminal responsável pelo processo, Carlos Alexandre, marcam um novo capítulo na denúncia de um movimento progressivo, e denunciado judicialmente, de simbiose entre os partidos e o Estado, apresentando-se parte de um continuum mais vasto que se concebe, em face do número de «casos (serão casinhos?)», decisivo para a redefinição do papel dos partidos, na sua função histórica de representação e intermediação dos interesse da sociedade civil.

Mesmo em face disto, e no entanto, a acusação que (ainda tacitamente) recai sobre o anterior candidato do centro-direita a Primeiro-Ministro é enevoada por uma série de circunstâncias e contextos específicos que fazem dela um caso paradigmático e, nesse sentido, um novo passo na relação entre o poder político e a Justiça no contexto português.

Por um lado, a ofensiva lançada contra as instituições judiciais, entremeada por exortações abertas de apelo à intervenção do poder político sobre este conjunto de organismos, marca uma nova face intempestiva de Rio que visou deslegitimar a ação do Ministério Público, da Procuradoria-Geral da República e, de forma mais velada, do TICÃO e do seu coletivo de juízes, na pessoa responsável pelo caso. Acompanhada por um populismo jurídico em voga no campo da tipologia de crimes aqui abordados (abuso de poder e peculato) e nos casos de teor político, a descredibilização jurídica cruza, decisivamente e agora, barreiras de ideologia, mostrando como a totalidade do espectro, de forma geral, não passa o teste do sapato no outro pé e, portanto, é alvo de um tendenciosismo pueril.

Por outro lado, a simbiose aberta e ativamente defendida entre o partido extra-parlamentar e a representação partidária em sede de Assembleia da República (e, em menor grau, com o partido no Governo) mostra que a conjugação do legado de transição do autoritarismo com a centralidade dos partidos neste novo ordenamento pós-1974 (76), decisivos no processo de intermediação e representação de interesses da sociedade civil no contexto das várias arenas institucionais, criou vícios e défices organizacionais sérios ao sistema partidário português. Em descontinuidade com as restantes democracias europeias, mais desenvolvidas e maturadas, o sistema de representação português, nascendo débil, é alimentado viciosamente pelos líderes partidários e pelas estruturas de poder, incapazes de reconhecer e dar «a Deus o que é de Deus e a César o que é de Cesár».

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Por fim, a inércia da arena governativa e dos pactos de regime que a suportaram na relação com o plano jurídico, materializadas na errática aglomeração do TICÃO e na não-recondução da Procuradora-Geral anterior, Joana Marques Vidal, é imputável, também, a Rio, que vê agora as consequências de uma penalização atrasada pela conivência e pelo estabelecimento de uma agenda de nomeações e reformulações que, sendo do interesse do arco da governação, se categorizaram como de interesse relativamente questionável para o restante arco de partidos e, de forma mais notória, para a sociedade civil, com um sucesso relativamente questionável na missão de oferecer transparência e eficiência à justiça.

A relevância do processo sobre Rio não se esgota, no entanto, no plano das consequências encerradas sobre o sistema político e sobre a sua relação com o sistema jurídico. Mais do que a causa, as problemáticas e indeterminações que pairam sobre o Partido Social-Democrata são, com efeito, traves-mestras de um sistema político entregue e ensimesmado num movimento cartelista progressivamente mais forte e com influência e ação crescente sobre os principais partidos e sobre a sua forma de operar. Distante do poder, o eleitorado abandona a sua função de sustentáculo das forças partidárias e condu-las, ainda que sem responsabilidade principal sua, para os braços de um Estado demasiado paternal e um modo adepto do patrimonialismo, de interesses estritos e subservientes.

A reação de Rio, a que já aludi, coloca a lume uma problemática cuja sua liderança, aparentemente tentando combater por meio de estudos de racionalidade económica na alocação da despesa partidária, acabou por aprofundar no partido que, em tempos de marcado insucesso eleitoral, liderou. A apologia, bafienta, de um novo controlo desesperado do poder (i.e. partidário) sobre um aparelho que, em Portugal, tem sido já acusado de excessivo tendenciosismo e simpatia perante a influência, em sentido amplo, acompanhada pela sugestão da manutenção do status quo ante bellum (aqui em sentido figurado) no que concerne à lei do financiamento dos partidos, é prova de uma negação profunda sobre o principal problema enfrentado por um leque de organizações partidárias falhadas na sua função basilar e demonstra uma tentativa, algo forçada, de escudar assuntos internos (ao seu partido, num primeiro plano, e ao sistema partidário, num segundo plano) com agentes externos.

Pese embora, assim, as alegações imputadas pelo Ministério Público tenham (alegadamente) sido realizadas sem dolo e com impactos particularmente reduzidos, o caso de Rio é um caso metafórico e um símbolo que o supera e que não se esgota em si, como tem sido visível, ao observador comum, pelos sucessivos casos criminais levados a cabo contra agentes dos mais variados partidos, no plano nacional e, principalmente, no plano autárquico, onde a competitividade partidária saudável é esquecida em favor de arranjos, acordos e negociatas de benefício próprio e, com ele, de deterioriação do normal funcionamento do sistema político e partidário e onde os indícios de uma cartelização, como nos falam Katz e Mair, parecem mais vivas e pujantes que nunca na nossa, e no cômputo geral das, democracia(s).

A política democrática, no geral, e a política portuguesa, em particular, estão, agora, gravemente enfermas, numa septicemia que, acompanhada por uma condição autoimune agravada, parece demonstrar a indisponibilidade das democracias, com a nossa em primeiro plano, em combater os males organizacionais e as evoluções deficitárias que a conduziram a este estado limítrofe das coisas. Com uma construção partidária patológica, especialmente a partir do momento em que afastou, corretamente, «os militares para os quartéis», na Revisão Constitucional de 1982, e que se tornou praticamente monopolística na representação dos interesses da sociedade civil, a nossa democracia traz, inevitavelmente, a lume algumas das principais problemáticas aprofundadas pelo tempo e estabelecidas, agora, num verdadeiro modelo em que o bem do País (e dos muitos) parece, há muito, subalternizado em favor dos interesses particularistas (dos poucos). O caso que agora envolve o PSD é, nisso, um símbolo.

O País desiludiu Mair e Biezen ao não destrinçar os vários tipos de partidos como organização co-dependentes mas separadas, errou com a reformulação do TICÃO, com a não-recondução da ex-Procuradora-Geral da República em favor da atual incumbente e com a assemelhação entre a Justiça e o desporto, e entre Carlos Alexandre/Ivo Rosa a qualquer interveniente estrela desse mesmo tipo de competições; e mostrou-se, por fim, inerte perante os principais desafios que esse mesmo campo, entre outros, lhe foi, com o teste do tempo, colocando. Ao reconhecermos as conquistas que o atual sistema de Governo indubitavelmente nos trouxe, o alerta à governação acentua-se e, mantendo-se a democracia «como o pior sistema, à exceção de todos os outros», urge uma mudança que considere os mais recentes acontecimentos e sobre eles exija, ao poder político, uma reflexão adequada, responsiva e verdadeiramente responsável e responsabilizável.