Com as alterações ao Código do Trabalho que entrarão em vigor em breve, o artigo 254.º referente ao regime de justificação de faltas será sujeito a modificações.

Actualmente, a lei laboral prevê que a prova da situação de doença do trabalhador é feita por declaração de estabelecimento hospitalar, centro de saúde ou ainda por atestado médico, o que, segundo relatam as estatísticas, acarreta cerca de seiscentos mil actos médicos por ano.

Com esta alteração o trabalhador deverá emitir uma declaração a atestar que está doente e terá a possibilidade de justificar a sua falta sem ter de se deslocar a um centro de saúde ou estabelecimento hospitalar, bastando-lhe um certificado digital emitido pelo Serviço Nacional de Saúde, tal e qual sucedia na altura da pandemia covid-19.

Acontece que, quando esta alteração foi proposta, muita revolta causou na classe médica, pois estes profissionais consideram que o SNS 24 não tem condições para emitir, com segurança, os referidos certificados digitais. E embora esta solução tenha sido adoptada na pandemia covid-19, assumiu-se única e exclusivamente como uma medida excepcional de mitigação da doença.

Na verdade, a avaliação do estado de saúde de uma pessoa é considerada um acto médico e a linha SNS 24 não é composta por médicos, motivo pelo qual nunca poderiam fazer uma avaliação completa e segura do estado de saúde do trabalhador. Nem tão pouco tal declaração seria capaz de justificar, cabalmente, uma qualquer falta ao trabalho, o que preocupou a classe médica, que sugeriu que à mingua do que sucede na Áustria e na Alemanha, as baixas por doença de curta duração fossem compostas de uma declaração, outorgada pelo próprio trabalhador, sob compromisso de honra, como forma de auto-responsabilização. E se no início essa questão foi desconsiderada, a verdade é que foi completamente acatada na versão final das alterações à legislação laboral no âmbito da agenda de trabalho digno.

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O que é que o trabalhador terá de fazer para justificar a falta?  Bastará que o trabalhador emita uma declaração, sob compromisso de honra, e a mesma seja acompanhada pelo certificado digital do SNS 24.

Apesar de todos os riscos e perigos inerentes a esta nova alteração, a verdade é que esta possibilidade estará sempre limitada no tempo, pois a declaração digital do SNS só poderá ser emitida duas vezes por ano e a situação de doença nunca poderá exceder os três dias consecutivos.

É perceptível a boa intenção subjacente a esta alteração, principalmente quando o Governo é confrontado com situações de verdadeiro desespero nos centros de saúde e hospitais, onde a falta de mão de obra faz imperar a sobrecarga no sistema de saúde. Contudo, se esta alteração não for bem definida, vai gerar abusos. Note-se que em 2018, segundo o trabalho da NOVA-IMS os portugueses, em média, faltaram quase seis dias (5,9) ao trabalho.

Ora, a introdução de uma nova forma de provar a doença por serviço digital verificada por alguém que não é médico, ainda que sob compromisso de honra, poderá potenciar faltas fraudulentas, gerando, por um lado, uma grande sobrecarga nas empresas, que deixarão de ter forma de atestar se o motivo justificativo da falta é, ou não, verdadeiro, aliada a uma verdadeira instabilidade e desorganização no seio empresarial e, por outro lado, uma grande sobrecarga no sistema do SNS 24 que não dispõe de meios suficientes para esta nova prática.

Além disso, para além da insuficiência de mão de obra do SNS 24 era necessária uma grande articulação entre estes profissionais e os médicos de família – responsáveis pela emissão dos certificados de incapacidade para o trabalho se houver necessidade de dar continuidade à situação de doença -, o que tendo em conta o estado da saúde do nosso país não nos permite equacionar como possível.

De uma ou de outra forma, é preciso ter consciência de que para resolver o problema da sobrecarga dos centros de saúde não se pode criar todo um novo problema à volta da justificação das faltas por doença, pois tal acabará por pôr em causa a relação das empresas com os trabalhadores. Por um lado, porque sem qualquer planeamento e ponderação o absentismo poderá ser fomentado com esta medida – pelo menos, seis vezes por ano os trabalhadores poderão auto justificar as suas faltas –, com todo o prejuízo que isso acarreta para as empresas e, por outro lado, se não forem criados mecanismos de controlo, a desconfiança e incerteza imperará sempre que um trabalhador tenha de faltar por motivo de doença, o que não deixará de afectar, naturalmente, o ambiente de trabalho e as relações laborais.

É certo que já nos fomos habituando às avalanches legislativas irreflectidas. Porém, no que respeita a medidas como esta, mais do que simplificar os processos e desburocratizar sem mais, é necessário, em primeiro lugar, planear de forma a garantir que s alterações têm forma de se concretizar sem pôr em causa os direitos dos trabalhadores, o normal  funcionamento das empresas e a (e necessária) estabilidade do próprio serviço de saúde.