Era, em 2015, o preso 44 da cadeira de Évora. José Sócrates, o ex-primeiro ministro de Portugal, possivelmente já não será julgado pelos três crimes de falsificação de documentos por que foi pronunciado em Abril de 2021. Dos 31 crimes de que o Ministério Público o acusaria, o juiz Ivo Rosa fez cair 25 e pronunciou o ex-primeiro ministro para julgamento de três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos.

Estamos em 2023, e os três crimes de falsificação, por consequência directa de um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, correm o sério risco de não serem julgados. O acórdão dá a possibilidade a Sócrates de em três meses poder arguir nulidades e irregularidades da decisão instrutória de Ivo Rosa e ainda 120 dias para um possível recurso.

Tudo isto fará voar a possibilidade de Sócrates ter um justo julgamento, sendo que os crimes em causa prescrevem no próximo ano e em 2025, não havendo tempo para uma decisão que possa impedir a prescrição.

Este instrumento jurídico, que afasta de forma subjectiva e inócua a responsabilidade criminal e civil, deixa sobre a sociedade, a quem a justiça deve uma resposta, a nuvem da desconfiança.

Nunca saberemos, neste caso concreto, se Sócrates de facto praticou os crimes de que é acusado.

A perversão da prescrição é esta mesma. Deixa-nos na dúvida, o que é exactamente o contrário do desígnio da aplicação das Leis e do Direito.

O tempo da justiça não anda a par com a necessidade de confiança que os cidadãos devem ter nela e vai-se agudizando de forma indigna este fosso.

O caso que agora trago à colação irá gerar uma onda de protestos e de grande revolta social. A justiça e os homens que a aplicam serão olhados de forma incompreensível.

A falta de meios por parte do Estado para uma investigação criminal com a máxima rapidez possível, alguns instrumentos dilatórios previstos na lei, que atrasam e fazem atrasar todo o processo, são factos reais, existem e devem ser repensados.

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É fundamental, para a existência plena e sã da democracia, que a justiça traga confiança aos cidadãos e que estes tenham e percepção do seu verdadeiro desígnio.

A grande possibilidade de os três crimes de falsificação de documentos, pelos quais Sócrates está pronunciado, não irem a julgamento significa que a perda irreparável de uma oportunidade única de afirmar de forma categórica que a justiça serve de facto para punir ou absolver.

É esta a resposta esperada pela sociedade. É este o papel da justiça nos verdadeiros Estados de Direito. Assistimos, portanto, a uma fraude das expectativas, a uma falha de todo o sistema jurídico que até aos dias de hoje não foi estudado nem repensado.

Ficar sem se saber se Sócrates, ou um outro qualquer cidadão, é de facto culpado ou não dos crimes que alguém diz que putativamente cometeu dará origem ao escândalo, ao populismo exacerbado que põe a sociedade portuguesa em confronto  com a justiça dos homens. Com a gravidade de não se conseguir perceber se tudo isto foi para favorecer quem não deve ser favorecido.

A linha que separa a prescrição de alguns processos judiciais que envolvem cidadãos que no passado exerceram cargos de responsabilidade e relevo político é muito ténue e trará a lume uma crescente revolta social que será sempre aproveitada por alguns para denegrir o Estado de Direito Democrático.

Repensar o papel da justiça nestes grandes e mediáticos processos, bem como aquilo que poderá representar para a sociedade portuguesa a prescrição, é de facto urgente, com a finalidade de restabelecer de alguma forma a confiança e a paz na justiça.

Com este caso que envolve José Sócrates, e a elevada probabilidade de os três crimes de falsificação de documentos prescreverem, a democracia ficará ainda mais fraca.

Em suma, o arguido e ex-presidiário número 44 só aproveitou as falhas do sistema, do Estado e até da própria lei. Ganhou outra vez o esperto e o que pode pagar a bons advogados.

José Sócrates, a partir de agora, será para sempre lembrado, não como um ex-presidiário e ex-primeiro-ministro, mas sim como um santo: o santo prescrito.