O estalinista reciclado em czar deu uma de Pedro o Grande e engoliu um território seis vezes maior do que o de Portugal, e com mais de 44 milhões de habitantes, para almofadar o seu país, que é de longe o maior do mundo.

O maior, mas com relativamente pouco mar navegável e deserto: 9 habitantes por km2 (EUA 36/km2, China 149/km2, França 119/km2, Grã-Bretanha 282/km2, Brasil 25/km2, a própria Ucrânia 72/km2, só para dar alguns exemplos).

O grande rival desde os tempos do comunismo nunca foi invadido porque tem mar de dois lados e, do Norte e do Sul, apenas dois vizinhos, ambos comparativamente muito mais fracos. Já a Rússia pode ser e tem sido facilmente invadida, mesmo que depois os penetras descubram que a digestão é impossível.

O poder imperial russo sempre soube disto. E com o regime comunista a fome juntou-se à vontade de comer porque às necessidades estratégicas de segurança somou-se o imperativo humanístico da difusão do socialismo científico. À boleia desta doutrina, e dos resultados da II Guerra Mundial, a Rússia tornou-se uma superpotência. E quando esta implodiu deixou a memória da grandeza pretérita enquanto as franjas do império deram à sola para se irem acolher, as que foram aceites, debaixo do guarda-chuva da OTAN.

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Esta, a OTAN, garantiu durante décadas que a Europa Ocidental vivesse em paz, com um inimigo comum que lhe servia de cimento, e que era a URSS. Foi aliás a OTAN, e não as gabadas excelências da União Europeia, que a garantiram, à paz. E a percepção de que o urso russo, ferido, podia ainda ser perigoso; a constatação de que há poderes ascendentes que talvez ainda nos venham a pôr, como os deles, os olhos amendoados; a infeliz circunstância de a Europa ter uma longa tradição de batatada interna; a inércia – tudo concorreu para que a OTAN não tivesse seguido o caminho da sua contraparte do outro lado, o Pacto de Varsóvia.

Isto não impediu que os últimos presidentes americanos começassem a torcer o nariz a pagar o pato da defesa europeia e a sugerir uma grande inconveniência – que a Europa contribuísse mais com recursos e menos com perdigotos.

A OTAN é, para já, um vencedor desta guerra: as alianças militares, mormente se bem-sucedidas, é melhor preservá-las. E os federalistas europeus outro: do que precisamos é de um exército europeu, vai ser uma cantilena que agora deixa de parecer, como de facto é, uma loucura.

Esta sumária descrição dos factos insere-se num esforço de objectivação: a realidade tem os seus motivos e a ponderação destes costuma ser boa conselheira – os estados de alma não. É esta sobriedade que permeia o discurso de quem lembra dois factos: um é o de que a geopolítica casa mal com discursos moralistas; e o outro que o direito internacional (que Putin espezinha com despudor) só seria verdadeiramente direito se houvesse um aparelho repressivo para o impor, como existe dentro dos ordenamentos nacionais. Como não há, restam os factos.

Foram estas considerações que levaram a que a Ucrânia não tivesse sido admitida na OTAN. Afinal de contas, a génese da aliança tem um carácter defensivo anti-soviético, que se confundia, na natureza das coisas, com anti-russo. E isso, mais o peso da história, no caso consubstanciado pela emergência relativamente recente da Ucrânia como Estado-nação, levava a que se estimasse que tal adesão fosse encarada como uma provocação, por ficar a Rússia cercada de inimigos potenciais.

Sucede que as opiniões públicas do Ocidente acham a guerra uma coisa bárbara e primitiva, e portanto a missão da OTAN é evitá-la: admitir as repúblicas bálticas, todas em 2004, era uma coisa; e a Ucrânia outra. O que não faz com que o cidadão ucraniano que hoje se vê indefeso perceba por que razão tem menos direito à solidariedade do que, por exemplo, o Búlgaro ou o Lituano.

Não percebe ele nem a generalidade das opiniões públicas. Excepto pelo facto aborrecido de que estas querem ganhar guerras com a condição de não as pagar, ainda menos travá-las, e até mesmo exigindo dos seus poderes que lhes limitem os incómodos.

Que isto é assim mostra-se pelo facto de as reacções, até agora, terem consistido numas sanções piedosas, devidamente calibradas para não terem um efeito boomerang.

É possível que os cidadãos europeus, velhos, cansados, socialistas de obediências várias, albergando as suas decrépitas quintas-colunas do comunismo derrotado, que hoje quase que unicamente por antiamericanismo primário defendem a agressão putinesca, comecem a cair em si: a história não acabou, e projecta sombras compridas; e si vis pacem para bellum.

Este acordar é outra consequência da guerra. O mais ver-se-á com a evolução: não é impossível que Putin descubra que afinal a sua população não é tão entusiástica como ele da restauração da superpotência, se com isso continuar a arrastar os pés do desenvolvimento e, neste momento, nem sequer há a certeza de que a Rússia não se vai atolar num osso guerrilheiro a lembrar o pântano do Afeganistão.

E pode bem ser que, no nosso tempo, em que a guerra chega pela televisão e pelas redes sociais, mesmo que filtrada, mesmo que embrulhada em notícias falsas, os cidadãos russos, antigos irmãos dos ucranianos nas delícias do socialismo, descubram que não estão na realidade ali potenciais inimigos, como não o são verdadeiramente aqueles países que fizeram uma aliança para se defenderem de uma doutrina que eles próprios já enterraram.

Só dúvidas. Entretanto, as bandeirinhas da Ucrânia em milhões de murais no Facebook dizem bem de quem as põe. E diriam melhor se os respectivos donos estivessem dispostos a pagar forças armadas porque a independência não sai de graça; e se lembrassem que não é a melhor das ideias ir sempre buscar energia ou bens onde são mais baratos, quando o preço disso seja pôr na mão do fornecedor mais poder do que o que nos convém.