Fui a um cemitério deixar flores. Tinha passado apenas um ano desde a última vez que tinha estado ali. Cá fora, na mesma rotunda, estava a mesma fonte, onde as gaivotas pousam quando há tempestade no mar. À entrada, à sombra do toldo de um quiosque, a mesma florista tristonha vendia meia dúzia de molhos de gerbérias, nas quais ninguém parecia ter pegado desde que a última vez que a vira. Pareceu-me que tinha estado à minha espera, como se não tivesse uma vida entre as minhas visitas.
Não me lembrava de o portão ser assim (fazia-o cinzento), nem do jazigo da família Alves, à direita de quem entra, adornado com azulejos pintados à mão. Nunca tinha reparado nos dois bancos de jardim à esquerda, debaixo de dois carvalhos, onde me sentei para me orientar, pois estava perdida como se nunca lá tivesse entrado. Vista do cemitério, para lá dos seus muros, a cidade estava no seu devido lugar, mas lá dentro as coisas não batiam certo.
Não sabia se deveria ir mais para cima, para perto da colina, além dos túmulos de bombeiros mortos em serviço, se mais para baixo, perto da campa da criança que morrera aos quatro anos, onde se depuseram brinquedos em louça sobre ladrilhos azuis. Poderia ser mais perto da campa de Nume Viegas, falecida em 1989, que me pareceu esquecida por quem a sobreviveu; ou mais perto de Antero Jacinto, da Guarda Nacional Republicana. Seria mais junto de Maria de Lurdes, junto à lápide de quem um homem falava, prostrado, levantando os olhos na minha direcção quando passei por ele, como eu se tivesse entrado sem licença no seu quarto?
Não estava como se me tivesse perdido numa cidade desconhecida, mas como se me tivesse perdido dentro de casa. Como se acordando, o que me era familiar tivesse sido chocalhado, caindo tudo num novo lugar. Foi como chegar depois de uma tempestade de areia a um lugar familiar: talvez tudo fosse o mesmo, mas as dunas tinham mudado de sítio. Os vivos são quem leva a desordem para dentro dos cemitérios, onde as coisas têm o seu lugar numerado. Se os nossos mortos não se aguentam arrumados, é apenas porque continuamos vivos.
Por minutos, distraí-me do que andava à procura com um cão que também andava por ali perdido e parou aos meus pés, a olhar para mim. Uns metros atrás, num passo aflito, uma mulher jovem tentava encontrar o dono. “Vieram abandoná-lo ao cemitério, porque aqui ninguém vê”. O cão cheirou-me os pés e lambeu-me as mãos. Eu não era quem ele procurava. Depois, a mulher afastou-se e ele foi atrás dela, como teria ido atrás de qualquer um, no seu pânico alegre, correndo nervosamente em direcção a parte nenhuma.
Depois de encontrar o que procurava, a confusão passou. Apenas me assustara, pensei, porque ia à procura de alguma coisa. Mais ou menos como na vida, em que nos perdemos por estarmos à procura, sem saber sempre de quê. Talvez se não procurarmos por nada, não nos cheguemos a assustar, nem andemos tontos. Mas como não podemos parar de procurar, vamos um pouco como um cão abandonado, sorrindo contra o vento, como se estivesse alguém à nossa espera.
À saída, ainda lá estava o mesmo homem, junto da lápide de Maria de Lurdes. Ao seu lado tinha um alguidar com água. De mangas arregaçadas, lavava a campa com um esfregão enquanto falava em voz alta, como se esfregasse as costas de uma mulher no banho. E, muito senhora do meu caminho, não fui capaz de o olhar uma última vez, e fui-me embora de olhos baixos.
Djaimilia Pereira de Almeida é autora de “Esse Cabelo” (Teorema/Leya, 2015).