Tanto quanto me recordo, sou sportinguista desde os meus 10 anos de idade, atraído e empolgado pela magia e pelas façanhas dos famosos “cinco violinos”. Como já sou octogenário e tenho mantido sempre a minha fidelidade clubística, há, portanto, cerca de sete décadas que acompanho a vida do Sporting, vibrando intensamente com as vitórias e sofrendo amargamente com as derrotas. No que ao futebol diz respeito, as vitórias ocorreram, sobretudo no passado, ao passo que as derrotas têm acontecido, de forma quase permanente – apenas intercaladas por vitórias esporádicas – nas últimas três ou quatro décadas. Há cerca de oito anos, quando abandonei definitivamente a minha actividade profissional na área da docência e da investigação, resolvi aprofundar a minha ligação clubística tornando-me sócio e adquirindo gamebox para assistir aos jogos no estádio e apoiar a equipa mais assiduamente. Esta fase de maior aproximação ao clube coincidiu, por mero acaso, com o início da presidência do dr. Bruno de Carvalho e, infelizmente, abrangeu, também, o período mais negro da história do SCP, assinalado de forma indelével pelos fatídicos acontecimentos de 15 de Maio – assalto à academia de Alcochete – e posteriores atropelos à democracia interna, que culminaram na usurpação e concentração de poderes e num grosseiro e despudorado exercício de totalitarismo.
Na sequência dos acontecimentos que mancharam a história do clube e causaram danos materiais e reputacionais dificilmente reparáveis – que a recente vitória no campeonato nacional atenua, mas não apaga totalmente – a assunção da responsabilidade institucional deveria, ipso facto, ter conduzido, de imediato, à demissão do presidente. Ao invés de ter adoptado esta atitude mais consentânea com a extrema gravidade dos factos ocorridos, o dr. Bruno de Carvalho procurou minimizar o seu impacto na vida do clube, banalizando-os e inserindo-os na vida quotidiana na categoria de eventos “quase” normais. Simultaneamente, o presidente, impulsionado pelo reforço da legitimidade obtida numa votação plebiscitária, refinou o seu pendor populista e autoritário.
O populismo, embora possa surgir com diferentes roupagens, é, na sua essência, a rejeição do pluralismo. Os populistas consideram que apenas eles representam o povo – neste caso a “nação” sportinguista – e os seus verdadeiros interesses; estão convictos que são os seus representantes morais exclusivos e, se conseguirem alcançar uma parcela de apoio suficientemente vasto, acabarão – como aconteceu no SCP – por consolidar um poder de cariz autoritário, que exclui todos os que não forem considerados parte “pura” desse povo, neste caso os execráveis sportingados. Na mitologia grega, a hybris (ou hubris) é a personificação do exagero e da desmesura e da arrogância; da soberba, do orgulho e do ultraje… David Owen, médico e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros inglês, num artigo publicado creio que em 2009, aludiu a uma desordem psicológica desencadeada pelo uso (ou mau uso?) do poder, denominada síndrome de hubris, ou “síndrome da presunção”. Os principais sintomas que caracterizam esta patologia parecem coadunar-se com o comportamento do presidente do SCP e da maior parte dos líderes populistas: perda de contacto com a realidade; desprezo pelos conselhos ou críticas dos outros; messianismo e tendência para a exaltação e glorificação; identificação com a nação ou com a organização; auto-confiança excessiva, conduzindo à sensação de omnipotência.
A longa “seca” de 19 anos terminou agora, com o improvável triunfo na competição da primeira liga. O SCP, contrariando todas as expectativas – partiu apenas com 3% de hipóteses nos vaticínios de vitória – conquistou o seu 23º (19º?) título de campeão nacional. Este feito integra-se na categoria de acontecimentos que, na esteira de Taleb, podemos denominar cisne negro. Trata-se de um acontecimento atípico, que se encontra fora das nossas expectativas normais; tem, também, um enorme impacto; e, apesar do seu carácter desgarrado, a natureza humana faz com que construamos explicações para a sua ocorrência, depois de o facto ter lugar, tornando-o compreensível e previsível.
Durante este último longo interregno, e também no decurso dos dois decénios anteriores, o SCP passou por vários períodos conturbados, sucedendo-se os presidentes e os treinadores num contexto de lutas intestinas, alimentadas por agendas pessoais e pela incontida ânsia de protagonismo. A “feira de vaidades” e a consequente instabilidade que tem caracterizado a vida do clube há várias décadas só foi interrompida numa fase de maior acalmia, durante o mandato do presidente João Rocha (1973-1986). Após a conquista do penúltimo título, com Laszlo Boloni, em 2000-2001, já passaram por Alvalade 18 treinadores e ao dr. Dias da Cunha, que dirigiu o clube de 2000 a 2005, sucederam-se quatro presidentes e uma Comissão de Gestão!
O “estado de sítio” permanente em que o SCP tem vivido, sobretudo nestes últimos anos, parece agora ultrapassado. O populismo perdeu força e está, por ora, contido e a contestação ruidosa permanece silente. A pandemia e também, obviamente, as vitórias, não só no futebol, mas também nas modalidades, têm constituído os principais antídotos para combater as dissidências internas e os egocentrismos exacerbados. A situação actual, de acalmia e pacificação persistirá no futuro ou voltaremos brevemente às divergências internas insanáveis e à habitual instabilidade? As previsões poderão oscilar entre o optimismo exagerado, tipo Pangloss, e o pessimismo inveterado, tipo Cassandra. De qualquer modo, parece inegável que a direcção presidida pelo dr. Frederico Varandas, resistindo às várias ondas de contestação, tem feito um trabalho globalmente positivo, conseguindo mesmo conciliar a redução de custos com a manutenção de elevado nível competitivo nas modalidades e no futebol, tendo já alcançado mais êxitos desportivos do que o anterior presidente durante todo o período em que dirigiu o clube.
Termino com uma pequena nota sobre a festa do título. A festa não foi linda, não! Em Lisboa, assistimos a actos deploráveis de violência e de total desrespeito das normas vigentes no estado de calamidade. As culpas são repartidas e o Sporting também não estará isento de responsabilidades. As comemorações realizaram-se, no entanto, um pouco por todo o país e, fora da capital, parece que não se registaram excessos assinaláveis. Haverá certamente consequências negativas em termos sanitários, no que diz respeito ao controlo da pandemia, que só poderão ser contabilizadas dentro de algumas semanas. A “festa” em sentido lato, terá tido, contudo, paradoxalmente, também alguns efeitos benéficos, em termos de saúde pública: para além da violência e do não cumprimento das normas poderá, também, ter havido uma mistura de catarse colectiva, de libertação de situações de “clandestinidade” auto-impostas, de afirmação identitária, enfim, de reforço da auto-estima.