Não existe nada mais dilacerante do que o afastamento e a perda daqueles que nos são caros. A emigração portuguesa foi, para muitos, isso mesmo: o afastamento definitivo e implacável daqueles que partiam.

Conheci de perto a realidade dos protagonistas da emigração portuguesa nos anos cinquenta e sessenta, mas apenas a idade me trouxe a memória e a reflexão sobre o muito que tive oportunidade de assistir no passado.

Quando somos jovens, muito do que olhamos não vemos, muito do que escutamos não ouvimos e muito do que vivemos não compreendemos.

Os problemas, as angústias, os receios e as preocupações são para os adultos.

É assim, regra geral, e ainda bem, pois, como todos sabemos, as mudanças e as responsabilidades que chegam com o passar dos anos alteram a nossa perspetiva e o nosso sentir sobre a maioria dos assuntos. Se tivermos a sorte de uma vida longa, haverá tempo de sobra para refletir e cismar.

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Com a idade adulta e sobretudo com a chegada dos filhos, começamos finalmente a compreender os nossos pais e muito daquilo que fazíamos e pensávamos no passado já nos parece, afinal, estranho e longínquo, suscitando apenas um sorriso condescendente para com aquele jovem que um dia fomos.

Chegada à meia idade, filha e sobrinha de antigos emigrantes e mãe de mais um jovem que escolheu sair de Portugal para fazer a sua vida, surpreendo-me muitas vezes a olhar para trás, a recordar os muitos emigrantes que conheci na minha infância e vida que levavam, cheia, como a maioria das vidas, de alegrias e tristezas, mas diferente de muitas outras, por privada da companhia de tantos dos seus.

Era uma vida difícil, numa altura em que emigrar criava uma cisão demasiadas vezes definitiva, separando famílias e casais para sempre. Convém recordar que, no passado, uma viagem de avião custava uma pequena fortuna, elevando-se ao estatuto de luxo reservado a poucos, merecedor de roupas de festa, muito glamour e aplausos à chegada.

Muitos emigrantes portugueses demoraram anos, após rigorosas poupanças, para regressar a Portugal, mas houve muitos que não regressaram, reféns de um mundo demasiado grande ou de uma sorte demasiado pequena.

Pergunto-me se terá sido o caso do Sr. António, emigrante português, que, nos anos setenta, já bem entrado na meia idade, vendia fruta numa modesta barraquinha na esquina da Rua Uruguai com a Rua Andrade Neves, no Rio de Janeiro.

Para a criança que fui o Sr. António era só um senhor sempre muito sério, com ar mal humorado, junto de quem, com a impaciência própria dos mais novos, me via obrigada a esperar que a minha mãe comprasse a fruta.

Hoje, bem mais velha, o Sr. António teima em aparecer nas minhas lembranças e a pessoa que hoje sou, onde antes via um semblante sério e mal humorado, recorda agora um rosto que imagina marcado pela desilusão, pela saudade de casa e da família, por sonhos desfeitos, por desencanto e cansaço.

Afasto essas memórias e espero estar enganada.

A realidade da emigração está cheia de casos de superação, de pessoas que a partir do nada construíram verdadeiros impérios, histórias inspiradoras, que alimentaram e ainda alimentam o sonho de todos aqueles que partem, deixando para trás família e amigos.

Mas há também a imensa maioria, que, não tendo feito fortuna, conseguiu levar uma vida feliz e realizada, ajudar os que cá deixaram, dar aos seus filhos as oportunidades que não tiveram, romper com os grilhões da pobreza e regressar a tempo de abraçar pelo menos alguns dos seus.

Infelizmente, haverá também aqueles a quem a sorte não sorriu, que não conseguiram regressar, e volto a temer que o Sr. António tenha sido um deles.

Questiono-me se a sua família e vizinhos em Portugal ainda se recordarão do António que um dia emigrou para o Brasil e nunca mais voltou.

Não tenho resposta para essa questão, mas de uma coisa tenho a certeza: Portugal esqueceu-o, como ainda hoje esquece os milhões de portugueses que deixaram o País.

Incompreensivelmente, não há em Portugal nenhum grande museu que conte e interprete a história da diáspora portuguesa, muito provavelmente o fenómeno mais perene e importante para formação da nossa identidade, repleto de estórias coletivas e pessoais que merecem ser contadas.

Se desviarmos o olhar para o outro lado do Atlântico, encontramos Ellis Island, no Porto de Nova York, onde está situado o Museu Nacional da Imigração, instalado num complexo de edifícios em que, entre o século XIX e o início do século XX, se fazia a admissão da maioria dos imigrantes que chegavam aos Estados Unidos.

O museu está situado numa ilha próxima da Estátua da Liberdade, um dos maiores, senão o maior símbolo da cidade de Nova York. Uma feliz coincidência para quem nelas acredita.

Sem verdadeira Liberdade, em todas as suas dimensões, não há desenvolvimento, não há riqueza, não há democracia, nem justiça, pelo que, a partir de 1886, com a inauguração da estátua da Liberdade, quando se aproximavam de Ellis Island, aqueles que buscavam um futuro no Novo Mundo tinham para recebê-los um monumento à Liberdade e, com ele, a lembrança de que, livres, a fortuna e a prosperidade dependiam essencialmente do seu esforço, engenho e responsabilidade individual.

Ao percorrer o edifício que outrora recebia os imigrantes em Ellis Island, é possível imaginar quanta esperança, quanto entusiasmo e também quanto sofrimento albergaram as suas paredes, encontrando-se essa memória reunida em fotografias, objetos pessoais e registos que não deixam morrer a lembrança dos sacrifícios e da coragem dos doze milhões de imigrantes que por ali passaram  rumo ao sonho americano, fazendo de Ellis Island uma digna e verdadeira homenagem aos homens e mulheres que ajudaram a construir a América.

Entre esses homens e mulheres também estiveram milhares de portugueses e, regressada a este lado do Atlântico, volto a perguntar-me por que motivo, entre tanto dos nossos impostos consumidos, ainda não temos um verdadeiro museu dedicado à diáspora portuguesa e a esta vontade que nos está no sangue de sair e ver mundo.

Quando o tema é partir à descoberta de novas paragens ou fugir da pobreza e da falta de perspetivas, fomos sempre pioneiros e havendo tanto a estudar, interpretar, dizer e recordar sobre o assunto, é no mínimo estranho que Portugal não se preocupe em fazê-lo, parecendo, pelo contrário, envergonhado da sua história, da sua passagem pelo mundo e do que, melhor ou pior, fruto de realidades que só podem ser entendidas à luz do seu tempo, foi deixando pelo caminho.

Um país decente não esquece a sua história e a dos seus.

A verdade, porém, é que Portugal teima em esquecer e negligenciar os seus emigrantes, relegando e limitando as suas homenagens para as visitas que no 10 de junho ocupam os seus chefes de Governo e Estado.

Cíclica e invariavelmente, escolhem uma qualquer comunidade portuguesa no estrangeiro, fazem a chamada «visita de médico», tiram umas selfies, repetem o discurso do costume e voltam para casa com o sentido do dever cumprido.

Muito pouco para a grandeza da diáspora portuguesa e para a coragem e valor dos seus protagonistas.

Para honrar, de facto, os seus emigrantes, Portugal deveria contar a história da diáspora e as muitas estórias dos portugueses anónimos que a protagonizaram. Deveria valorizar o seu voto, facilitando e promovendo a participação daqueles que, mesmo estando fora, não deixaram de ser portugueses. Explicar a todos quantos cá ficaram, principalmente às gerações mais novas, o fenómeno da emigração e sobretudo adotar políticas que garantam que os portugueses que queiram ficar no seu país possam fazê-lo e que aqueles que queiram regressar possam continuar a sonhar com o dia em que deixarão de ver em Portugal as mesmas dificuldades que os levaram a partir.

Aos nossos imigrantes Portugal deve uma política de imigração responsável, respeito e proteção contra quem vive da sua vulnerabilidade e se aproveita do seu desespero.  Devemos-lhes, na verdade, o mesmo acolhimento que esperamos e desejamos para os nossos, quando partem, bem como a criação de condições para que, trabalhando e se integrando na nossa sociedade e cultura, possam encontrar em Portugal uma vida digna e feliz.

Que sirva esta data para desejar aos nossos emigrantes e imigrantes que a sorte lhes sorria e que o tempo venha a confirmar que, apesar do muito que se deixa para trás, vale a pena sonhar com a possibilidade de um futuro melhor e procurar uma nova vida, seja lá onde for que ela se encontre.

Ao contrário de Portugal, que escolheu não homenagear os seus emigrantes, aproveito esta oportunidade para manifestar a minha admiração pela coragem e pelo mérito dos milhões de portugueses que, ano após ano, geração após geração, deixaram Portugal à procura de um futuro, aqueles que fizeram fortuna, os que  construíram uma vida, os que melhoraram as suas condições, os que realizaram os seus sonhos, os que tiveram menos sorte, os que voltaram, os que ficaram, os que têm saudades, os que já não querem regressar, os nossos jovens que agora partem, os meus pais e tios e, claro, o Sr. António.