Sendo nos dias que correm o alvo político preferido da esquerda, não espanta que também Daniel Oliveira tenha vindo malhar em Carlos Moedas por causa da demora na concretização do memorial da escravatura. No entanto, Oliveira achou interessante fazer um longo preâmbulo — cerca de metade do seu artigo — para fustigar as costas do país antes de chegar ao assunto propriamente dito. Tendo eu escrito muito recentemente sobre o memorial e sobre as paranoias esquerdistas a esse respeito — a extrema-esquerda jura que ele está a ser boicotado — é esse preâmbulo, e apenas ele, que aqui e agora me interessa. E porquê? Porque transmite as confusões do costume, os lamentos e as acusações da praxe woke, e a teoria do duplo critério que a extrema-esquerda martela com insistência e que assenta em pura ignorância dos factos.

Daniel Oliveira começa por falar da Luisiana, onde algumas plantações se converteram em marcos evocativos do que foi a antiga escravidão nos Estados Unidos, e lamenta que em Portugal, que teve um papel tão importante no comércio de escravos, não se faça algo de equivalente. Ou, então, que não se siga o exemplo de Liverpool, que inaugurou, há 16 anos, um museu dedicado à escravatura. Ao invés, no nosso país, apegado “à fantasia da colonização exemplar”, nada disso se faz, o que Oliveira critica. Mas estará a pôr na sua balança crítica coisas de escala idêntica? Não está. Estabelecer um paralelo entre o sul dos Estados Unidos, onde chegou a haver 4 milhões de escravos negros, trabalhando duramente em plantações de tabaco, algodão, etc., e Portugal, onde, em simultâneo, houve apenas alguns milhares de escravos domésticos ou rurais é lançar poeira para os olhos das pessoas. Comparar o actual Reino Unido, de onde partiram perto de 31% do total dos navios negreiros, com o actual Portugal, de onde terão partido cerca de 4%, é gostar de mistificar as coisas.

E a mistificação não fica por aqui. Daniel Oliveira censura igualmente a Inglaterra, que foi o maior transportador transatlântico de escravos no século XVIII, por “só recentemente” se terem aí começado “a levantar vozes lembrando o relevo que (os ingleses) tiveram na expansão quase industrial do comércio de escravos”. Manifestamente, Daniel Oliveira não sabe do que fala. Nunca terá lido Wilberforce, Clarkson ou outro dos primeiros anti-escravistas britânicos e não faz a mais pálida ideia do que foi a campanha abolicionista na Grã-Bretanha. Ao contrário do que pensa, a questão do tráfico de escravos foi central para os britânicos durante mais de 100 anos, de finais do século XVIII a princípios do século XX, quando o tráfico feito por muçulmanos ainda subsistia no Índico. O assunto do comércio negreiro deu origem a uma campanha ideológica e política que tocou quase todos os sectores da sociedade britânica. Era a tal ponto difundida a discussão sobre o tema e tão generalizada a indignação que ele gerava, que um jornal português dessa época referia que, em Inglaterra, “quase todos os cafés e lojas públicas tinham tabuletas com petições para a abolição geral do comércio de escravos e os honrados abolicionistas quase forçavam os passantes a irem lá assinar os seus nomes. Tudo se agitava, tudo fervia, por este único motivo de humanidade.” Essa efervescência produziu inquéritos parlamentares que tornaram públicas as cruéis condições em que operava o então chamado “odioso comércio” britânico, alimentou discursos, publicações, sermões, petições assinadas por milhões de pessoas apontando o dedo acusador ao próprio país, culpado daquilo que começara a ser visto como um pecado que acabaria por suscitar a ira de Deus, e exigindo o seu fim imediato não apenas no Reino Unido — o que, efectivamente, aconteceu em 1808 — mas em todo o mundo.

Dizer que só agora é que se levantam vozes em Inglaterra para censurar o papel que esse país teve no tráfico é uma asneira de todo o tamanho. Não, não foi só a partir de 2007, quando a Câmara de Liverpool decidiu abrir um museu dedicado ao tráfico negreiro, que os ingleses começaram a “educar o público sobre a história e o legado da escravatura”, como pensa e escreve Daniel Oliveira. Foi a partir de 1787 quando a primeira das inúmeras petições abolicionistas ao Parlamento foi assinada por 60 mil pessoas iniciando uma campanha e um debate público que prosseguiu durante décadas. Na sua abissal ignorância da História, os militantes de causas woke julgam que descobriram o sentimento de aversão à escravatura e a noção de brutalidade e injustiça que ela acarreta, mas estão rotundamente enganados.

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E também estão enganados no juízo que fazem sobre a forma como Portugal lida com o passado. Apoiando-se em dois ou três exemplos escolhidos a dedo, Daniel Oliveira sugere que Portugal é uma espécie de obstinada anomalia. Como ele diz, no contexto de uma alusão a pedidos de desculpa do primeiro-ministro e do rei dos Países Baixos pelo envolvimento desse país no tráfico negreiro, “só Portugal, com um papel muito superior nesse crime, continua a evitar enfrentar o lado negro do seu passado. Sempre que o reconhece é para dizer que é preciso contextualizá-lo no tempo. Mas só a parte má. Quando falamos das nossas glórias, pintamo-las com magníficos valores do presente.”

Esta afirmação é triplamente  errada. É errada, em primeiro lugar, porque Portugal não evita esse lado negro do seu passado. Há muito que o estuda, o explicita e debate sobre ele (e sei do que falo porque o faço há décadas). Mas mesmo que assim fosse — e essa é outra razão para ser uma ideia errada — Portugal não estaria só nesse cuidado para não reabrir velhas feridas. Há vários outros países, antigos detentores de impérios coloniais e participantes no tráfico negreiro — a Espanha, por exemplo — que se recusam a alinhar de olhos vendados e cérebros vazios no muro de lamentações woke. E a afirmação é, ainda, errada — e aqui chegamos finalmente à teoria do duplo critério — porque se dizemos que é preciso compreender os acontecimentos lamentáveis do passado à luz dos valores e concepções da época, usamos precisamente o mesmo critério para falar dos acontecimentos louváveis. Não é verdade que pintemos as nossas glórias com “magníficos valores do presente”, diferentes dos valores com que foram olhadas e avaliadas pelos homens de antigamente. Não há duplo critério nenhum nem foi agora que nasceu o louvor do abolicionismo. Nem aqui nem em Inglaterra, o exemplo de que Daniel Oliveira se serve para afirmar essa sua tese. Não são os actuais ingleses que por motivos políticos e culturais “sublinham o seu papel pioneiro na abolição da escravatura”, como Daniel Oliveira imagina. São os actuais e os que foram contemporâneos dos acontecimentos. E não apenas os contemporâneos ingleses, mas os de todo o mundo, fossem eles portugueses, tunisinos ou japoneses. Em 1834, na época da abolição da escravidão um bispo britânico fez uma declaração profética: ““o mundo, envergonhado, imitar-nos-á (the world will be shamed into imitation)”. E tinha razão. A decisão britânica de libertar os cerca de 800 mil escravos que existiam nas suas colónias, pagando aos seus proprietários 20 milhões de libras — qualquer coisa como 42% do orçamento do estado — foi objecto de uma admiração generalizada. Foi louvada no seu próprio tempo e os homens que a levaram a cabo foram alvo de enormes elogios e induziram outros homens a fazerem o mesmo. O passado é um país estranho, mas não é um país cego nem estúpido.

A acusação de que usamos um duplo critério, consoante lidamos com a parte boa ou a parte má do passado, é, portanto, falsa e decorre da ignorância dos factos. Não há duplo critério nenhum, assim como também não há ocultação. “Passado colonial: glórias celebradas, crimes escondidos” foi o título que Daniel Oliveira deu ao seu artigo no Expresso. Essa dos “crimes escondidos” — supostamente escondidos, sublinhe-se — é um tesourinho deprimente da extrema-esquerda ao qual as pessoas dessa convicção política continuam a agarrar-se como lapa a rocha para justificarem a sua lengalenga militante, mas é totalmente falsa. Vivemos numa sociedade livre e aberta onde tudo é exposto, falado e debatido. Afirmo pela milésima vez que ninguém esconde crimes nenhuns, nomeadamente os que se prendem com a escravatura — e não serei certamente eu, que escrevo sobre o assunto desde a década de 1980, que quererei escondê-los. O papel de Portugal na história da escravatura é público, está explicitado e explicado em dezenas de livros, tem sido debatido de várias maneiras em centenas de artigos de jornal, podcasts, programas de rádio e de televisão. Não seria altura de os militantes woke aceitarem essa realidade evidente e acabarem com o seu teatro de sombras?