Antes do Covid-19, o teletrabalho, que já se encontra previsto na lei desde 2003, não tinha expressão significativa no tecido laboral português e europeu. Dados do Eurofound mostram que em, em 2015, só se contavam 8% de teletrabalhadores em Portugal, o que colocava o nosso país na cauda da Europa. Por razões sobejamente conhecidas, a pandemia veio alterar radicalmente este cenário, registando-se vários períodos em que o teletrabalho deixou de ser exceção para passar a regra, imposto aos empregadores e trabalhadores por via legislativa. Tanto assim foi que muitos autores consideraram estarmos a assistir ao “triunfo” do teletrabalho, sobretudo pela desmistificação de certos aspectos, designadamente os relacionados com a produtividade, os custos e o enquadramento dos trabalhadores nas estruturas empresariais.

Com a evolução favorável da situação epidemiológica, desde 1 de agosto que o teletrabalho deixou de ser obrigatório, com as excepções previstas no art.º 5.º-B do Decreto-Lei n.º 79-A/2020, na sua redacção mais recente, e que abrangem os trabalhadores imunodeprimidos, aqueles que possuam um grau de incapacidade igual ou superior a 60% e os trabalhadores que tenham filho ou dependente a cargo com ou sem deficiência ou doença crónica que sejam considerandos doentes de risco e estejam impossibilitados de frequentar presencialmente as actividades letivas, tudo por força da Resolução do Conselho de Ministros n.º 135-A/2021, de 29/09.

Com a normalização progressiva das relações sociais, incluindo as laborais, tornou-se vocal a preocupação sobre o teletrabalho no pós-pandemia. Ter-se-á tratado de um epifenómeno ou veio para ficar? A crer em alguns barómetros que se têm publicado, parece haver vontade tanto das empresas como dos trabalhadores em tornarem o trabalho remoto mais presente, com clara preferência para os chamados regimes híbridos ou mistos em que o trabalhador fica fora da empresa apenas alguns dias por semana.

Aqui chegados, é praticamente unânime que a regulação do Código do Trabalho relativa ao teletrabalho carece de ajustes (sobretudo se pensarmos num uso menos excepcional), resolvendo-se certas fragilidades e omissões. Importa, desde logo, garantir a protecção da privacidade do trabalhador e dos seus dados pessoais, garantir o direito ao descanso, regular o pagamento das despesas que advêm do teletrabalho e do subsídio de alimentação, resolver os problemas que se colocam em matéria de acidentes de trabalho, entre outras.

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Na sequência da apresentação do Livro Verde para o Futuro do Trabalho, que já chamava a atenção para a necessidade de modificações nestas matérias, os vários partidos têm, desde o início do ano, apresentado várias iniciativas legislativas no Parlamento. Em maio passado, foram debatidos na generalidade dez projectos-de-lei para alterar o regime do teletrabalho, os quais se encontram agora em discussão na especialidade.

Entre as propostas em discussão, detecta-se a convergência dos partidos quanto a determinados aspectos, como sejam a necessidade de acordo com o trabalhador para a adopção do teletrabalho, o respeito pela privacidade do teletrabalhador, a qualificação como acidentes de trabalho dos sinistros que aconteçam em casa ou a garantia da igualdade de tratamento entre trabalhadores à distância e os demais. Já quanto à questão do pagamento das despesas relacionadas com o teletrabalho (acréscimos de eletricidade, telecomunicações ou água) ou à consagração do direito à desconexão não existe total convergência.

Destacamos o projecto do PCP que pretende a limitação do teletrabalho a quatro dias por semana, por forma a garantir a manutenção do posto de trabalho, a que não é alheia a ideia de que a participação nas “lutas laborais” é mais difícil à distância. No projecto do PSD surge a regulamentação da possibilidade de visita do empregador ao domicílio do teletrabalhador, a qual só poderá ocorrer durante o período normal de trabalho, na presença do trabalhador e para controlo da actividade laboral. O projecto do BE vai mais longe e prevê que a visita só possa ocorrer em data previamente acordada entre as partes.

O PS, preocupado com os direitos de privacidade e de reserva da intimidade, quer proibir a captura de imagens, o registo de som e escrito e o acesso ao histórico dos computadores ou o recurso a outros meios de controlo invasivos da esfera pessoal do trabalhador. Numa cedência ao fantasma da produtividade, estabelece, ainda, que o empregador pode exigir ao teletrabalhador relatórios onde se sistematizem os assuntos tratados e os resultados obtidos.

Tanto o PS como o BE querem alargar as situações em que o trabalho à distância não depende de acordo entre as partes, sendo antes um direito dos trabalhadores: pais com dependentes até aos oito ou doze anos, respectivamente.

Nas matérias mais divisivas, a começar pelas despesas do teletrabalho, o PSD remete para o que se estabelecer no contrato de trabalho ou em sede de contratação coletiva, deixando claro que os valores pagos pelas empresas devem ser considerados, fiscalmente, custos para as empresas e não rendimentos para os trabalhadores. O PS, nesta matéria, começou por seguir a proposta do PSD para agora se aproximar da do BE, a qual prevê a obrigatoriedade de o empregador comparticipar os custos acrescidos que resultem do teletrabalho, sempre que este aumento possa ser comprovado. Por seu lado, PCP, PEV e PAN optam por definir um valor-base de onze euros que os empregadores teriam sempre de pagar aos trabalhadores por cada dia de trabalho à distância.

Quanto ao direito à desconexão, o PS, o BE e o CDS-PP preveem, globalmente, o direito a desligar durante o período de descanso, sendo que nenhuma sanção ou desvantagem pode resultar para o trabalhador que não responda às solicitações do empregador. No projecto do BE chega-se mesmo a considerar que a violação deste direito a desligar pode constituir assédio laboral. O CDS-PP propõe, em todo o caso, que o empregador possa, em caso de força maior ou de urgência, contactar o teletrabalhador.

O mais certo é que da especialidade resulte um diploma que agregue as várias propostas. Mas será suficiente para tornar o teletrabalho realidade quotidiana? Aguardamos pelas cenas dos próximos capítulos…