Atravessamos um tempo perigoso, em que áreas tradicionalmente conflituosas ao longo da história do século XX – como a Europa Oriental e o Médio Oriente – correm o risco de escalada para guerras mais gerais e sangrentas. E não faltam irresponsáveis e oportunistas, a braços com problemas ou competições eleitorais internas, prontos a usar esses riscos e tensões em benefício próprio, sem pensar nas consequências.

Lembro o Verão europeu de 1914, quando as elites da Europa atiraram milhões para uma carnificina de onde nasceu o século XX e as suas novidades políticas: o bolchevismo e o regime totalitário soviético e as respostas autoritárias e totalitárias ao bolchevismo, entre elas o nacional-socialismo hitleriano, radicalmente antissemita.  E depois a Segunda Guerra, o concentracionarismo, o fim do Euromundo e tudo o que se lhe seguiu.

Uma vertente importante do único “discurso de ódio” agora tolerado e até incentivado que poderá levar a outras guerras, é a actual narrativa à volta das duas maiores crenças do globo – o Cristianismo e o Islão – e, em certa medida, atingindo também o Judaísmo. A conflitualidade histórica entre o Judaísmo, o Islamismo e o Cristianismo, com os seus altos e baixos ao longo dos séculos, tem hoje um quarto polo, vindo do Ocidente: o fundamentalismo laico dos descrentes activos e agressivos contra o sagrado em geral e contra as “religiões do Livro” em particular.

Convergência anti-religiosa

Sabemos bem que, no passado, se expulsaram, condenaram ou converteram judeus à força, e que, nas guerras religiosas, cristãos e muçulmanos, católicos e protestantes, se exterminaram com zelo e crueldade. Mas a partir do século XVII as contas foram outras; no século XVIII, os iluminados e libertinos atiraram-se ao Trono e ao Altar, e entre o racionalismo à Voltaire e a pornografia blasfema tipo marquês de Sade, tudo se fez para mitigar a influência cultural e espiritual da religião cristã, criando a ideia de que a Igreja e os seus sacerdotes e religiosos não passavam de um bando organizado de sanguessugas legitimadoras da tirania real. Como consequência, Marat, Robespierre, Carrier, Fouquier-Thinville e outros guilhotinaram, afogaram, metralharam, dizimaram, de Paris a Nantes e à Vendeia, muitas dezenas de milhares de franceses cristãos de todas as condições sociais.

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Os bolcheviques e os seus sucessores, com um ódio cego às Igrejas, fizeram o mesmo na Rússia, no México, em Espanha, na China, na Indochina e em África, nalgumas ditaduras e tiranias comunistas. Como insistia o próprio Marx, o materialismo de Feuerbach era essencial ao sistema e o marxismo-leninismo iria ser, por princípio filosófico e político, materialista. Neste sentido, o Cristianismo assenta em princípios incompatíveis com o comunismo, embora na prática político-social pudesse haver coincidência e até algum entendimento, ora consciente e circunstancial, ora enganoso ou equivocado.

Mas a grande ofensiva contra os cristãos em geral e os católicos em particular dá-se hoje precisamente no chamado Ocidente, através de uma nova cultura que foi tomando de assalto, há já algumas décadas, os centros de poder académico e mediático.

A decadência do comunismo soviético e da sua burocracia autoritária e a incapacidade de atrair novos adeptos, sobretudo entre os jovens, marcou esta mudança. Daí veio o culto pelos “novos comunismos”: primeiro, pelos modelos maoístas e cambojanos, com os seus milhões de mortos; depois pelas causas da “Nova Esquerda”, ditadas por uma curiosa convergência entre o marxismo revisto por Herbert Marcuse e as acções armadas dos Panteras Negras.

A evolução, a partir daí, foi para a adesão às novidades culturais ensinadas por livros como A Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, ou avançadas pela Critical Race Theory norte-americana.

Para este anti-cristianismo militante foi decisivo o contributo de Daniel Dennet, Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens, os “Quatro Cavaleiros do Novo Ateísmo”. Deles, veio um crescente activismo anti-cristão, destinado a substituir os fundamentos da civilização do Ocidente, os valores de orientação permanente herdados da tradição cristã e testados na própria evolução social, por uma amálgama ideológica feita de filosofia iluminista e metodologia marxista adaptada. O resultado está aí, na multiplicação dos binómios cada vez mais delirantes de um marxismo cada vez mais imaginário e das listas de exploradores-explorados, com a tentativa de mobilização permanente de sucessivas minorias de oprimidos sexuais, raciais, animais ou climáticos para que assumam um papel que outrora era exclusivo do “Proletariado”.  O inimigo é agora uma “Burguesia” e um “Capital” feitos de brancos, de conservadores, de “fóbicos”, de anti-abortistas, de emissores de CO2, de consumidores de energia não-renovável… e de crentes.

Os ataques à religião cristã vêm muito deste espírito – e também de o alvo ser relativamente fácil, ou pelo menos razoavelmente disposto a dar a outra face, por virtude, sentimento de culpa, desistência ou indiferença. Já quanto ao Islão, desde que os ayatollas lançaram a Fatwa sobre Salman Rushdie depois dos Versículos Satânicos, ou desde que os jornalistas do Charlie Hebdo foram chacinados, os ânimos dos mais temerários parecem ter arrefecido – a ponto de os muçulmanos já integrarem aqui e ali o rol das vítimas a arremessar contra o “inimigo principal”.

Paris é uma festa

Thomas Jolly, o mestre de cerimónias das Olimpíadas de Paris que agora acabaram, um actor e encenador curricularmente modesto, escolheu o caminho mais fácil e festivaleiro.  Porque não, na cerimónia inaugural das Olimpíadas, uma paródia à Última Ceia? Pouca arte e muita “irreverência” trariam com toda a certeza muita polémica e popularidade.  Talvez um bacanal com um elenco de minorias sexuais sortidas, com um involuntário quê de galeria de aberrações medieval e um toque de pedofilia para apimentar; qualquer coisa que pudesse propagandear-se como um “hino ao paganismo dionisíaco e à sua liberdade, simbolizando o amor da Humanidade pelos Jogos”, mas que aludisse inequivocamente à última Ceia de Cristo, de Leonardo Da Vinci.

Do lado muçulmano, quer dos xiitas do Islão, quer dos sunitas da Arábia Saudita, quer de líderes como o presidente Erdogan da Turquia, vieram imediatos protestos sobre o despropósito do que era claramente um quadro paródico da Última Ceia, no meio de todo um festival de clichés.

A Santa Sé demorou a emitir um comunicado – o que se entende, por não ser da sua índole nem da sua tradição comentar semelhantes “manifestações artísticas” que, infelizmente, se têm vindo a banalizar. O comunicado da Santa Sé limitou-se, por fim, a referir o absurdo de inaugurar um evento desportivo que deveria celebrar “valores comuns”, ofendendo gravemente as convicções religiosas de muita gente. Um bispo norte-americano, Robert Barron, do Minnesota, definiu a “paródia grosseira” de Jolly como o produto natural de uma “sociedade pós-moderna profundamente secularizada” que tinha “o Cristianismo por inimigo”.

Um ecumenismo singular

Temos de assumir que passámos a ser uma minoria perseguida; mas que, ao contrário de todas as outras minorias perseguidas a “empoderar”, não vamos nunca fazer parte do arco-íris ou ser chamados a preencher cotas de inclusão, diversidade ou paridade.  Antes, vamos sempre funcionar como a maioria opressora, como o inimigo útil ou o catártico saco de box contra o qual os candidatos a cidadãos cumpridores e exemplares deverão treinar a falsa “irreverência”, experimentar os prazeres do único “discurso de ódio” consentido e ensaiar os lugares comuns de uma qualquer “arte”. Sabendo isto, também não podemos ou não devemos, como cristãos, defender-nos activamente da pancadaria, ou pagar na mesma moeda.

A este propósito, há muitos anos, perante os primeiros sinais e sintomas destes desacatos, um velho amigo meu, cristão velho (e por isso também consideravelmente reaccionário e versado em graças reaccionárias), propôs uma Liga das Religiões do Livro (LRL): uma espécie de Nações Unidas, centradas, não nos atentados ao clima físico, mas nos atentados ao clima metafísico. Na Liga, os “climáximos”, a tropa de choque, seriam os muçulmanos, encarregados de punir os atentados à Fé de todos os filiados – judeus, cristãos ou muçulmanos.

Aí, não haveria com certeza tantos Jollys a exercerem de ânimo leve a sua “arte” à custa do erário público e em prejuízo daquilo que para muitos crentes e descrentes é sagrado.