O Saed não sabia nadar.
No fim de semana, em agosto de 2016, em que conheci o Saed, em Lisboa, tinha acabado de criar, em Portugal, com um grande amigo, o ramo português daquela que é considerada a maior organização do mundo de empreendedorismo social – a Ashoka. Esta palavra, que significa “sem tristeza” em sânscrito, descreve muito bem o estado de espírito que se viveu neste fim de semana mágico, num turismo rural, perto de Castelo Branco.
O grande objetivo da Ashoka é o de identificar os empreendedores sociais com maior impacto em todo o mundo (94 países), a quem chamam de changemakers, procurando aumentar o seu impacto e inspirar outras pessoas, comunidades e países a adotarem esta cultura de transformação positiva da sociedade, através de uma atitude empreendedora, que procura resolver problemas prementes da sociedade.
Para lançar a organização em Portugal, preparámos um retiro de 3 dias neste idílio rural português, com jovens changemakers de várias nacionalidades do mundo. Turquia, Holanda, Alemanha, Reino Unido, Itália, Tunísia e… Palestina, Israel e Líbano. Objetivo? Resolver alguns problemas sociais e ambientais em conjunto, juntando perspetivas muito diferentes e, por vezes, antagónicas. Saed era o palestiniano.
O Saed nasceu num campo de refugiados na Palestina e foi, durante grande parte da sua infância, alvo de bullying, sendo constantemente apelidado de “idiota”. Só a música lhe dava algum conforto – o seu pai tinha conseguido que ele aprendesse Oud (um cordofone similar ao alaúde). Na sua adolescência, uma crise financeira familiar fez com que tivesse de trabalhar nos mercados para ganhar dinheiro para conseguir pagar as propinas. Assim aprendeu o “linguajar das ruas” e venceu a sua timidez natural. Essa timidez que vi quando, em 2016, o grandalhão de quase 1,90 metros, ao desafiá-lo para um mergulho na piscina, me disse: “O meu sonho era saber nadar. Tenho medo da água…”. Ironias da vida – um filho de um campo de refugiados, naquela que é provavelmente a zona mais problemática da história da humanidade, do que tem medo é da água.
Na Universidade estudou Comunicação e foi trabalhar para uma fábrica para pagar a Universidade. Ainda na Universidade criou a sua primeira organização – uma organização sem fins lucrativos que ensina música a crianças em campos de refugiados e que já chegou a mais de 7.000 crianças.
Consciente da falta de acesso a informação fiável naquelas zonas do mundo, e da abertura e entusiasmo da juventude aos meios digitais, criou uma plataforma digital que procura juntar, de forma transparente e responsabilizadora, decisores da região da Palestina (em especial a Autoridade Palestiniana) com as suas comunidades, promovendo a transparência, o acesso à informação e a liberdade de opinião. Chamou a esta plataforma “You Know”. E eu digo – tu sabes, meu amigo.
Tu sabes que não é com revolta e raiva que se constroem alternativas. Tu sabes que a tua dor e o teu sofrimento não justificam a saída fácil da raiva e da violência. Tu sabes a importância que a comunicação tem, num mundo que parece não se querer ouvir. Tu sabes que é nos pilares das pontes que está a edificação. Tu sabes que, para construir, é preciso olhar para a frente.
No retiro de Castelo Branco, fizemos uma mesa-redonda informal, não planeada, na qual participei como moderador, em conjunto com o meu colega cofundador da Ashoka em Portugal, com o Saed, um israelita e um libanês. Pudemos ser testemunhas do enorme ressentimento e dor acumulada entre nações. Mas, mais do que isso, pudemos ver como as histórias e as narrativas são diferentes, e influenciadas pela educação, pela cultura, pelo que ouviam dizer. E pelas imagens dramáticas e traumáticas gravadas na sua memória. A conversa não terminou bem, ainda que selada por um abraço coletivo. Mas um abraço resistente.
No fim desta conversa, fui com o Saed para a piscina. Primeiro ensinei-o a boiar, com uma boia de criança pequena. Depois, a dar umas braçadas. No fim do dia, tirei-lhe a boia e nadou. Nunca mais me vou esquecer da enorme alegria que levou daquela pequena conquista. E da gratidão que mostrou, com um enorme abraço emocionado, por uma coisa tão simples.
Desde esse dia, o Saed nunca mais saiu da minha vida. Falei com ele, várias vezes, sobre a possibilidade de fazer bootcamps de inovação social na Palestina, em Ramallah, no West Bank, onde vive. E sabem o que ele fez desde aquela mesa-redonda?
- Criou uma incubadora, na Palestina, de projetos de mulheres marginalizadas na sociedade palestiniana, e jovens empreendedores criativos, para apoio e desenvolvimento de iniciativas empreendedoras nas áreas de Agritech, Govtech e Fintech. Nesta incubadora junta empreendedores e investidores de Israel e Palestina, demonstrando a possibilidade de uma convivência produtiva;
- Continua a advogar pela causa do acesso à informação e da transparência, sobretudo junto da Autoridade Palestiniana;
- É frequentemente convidado por entidades como o World Economic Forum para ser a voz da esperança de uma geração, num contexto no qual muito pouca gente tem esperança.
A incubadora do Saed chama-se “A Montanha”. E ele é a prova de que a determinação e a boa canalização de vontade, em circunstâncias muito difíceis, podem operar milagres. Ele é o verdadeiro changemaker. E também a mim, me conseguiu tocar e mudar. A mensagem que me deixou é simples – é sempre possível fazer diferente e melhor, através da paz e da construção. A via da inovação social, da mudança.
Nas últimas semanas tenho trocado mensagens com o Saed. Está vivo, mas muito preocupado – com palestinianos, e com israelitas que tem como grandes amigos. Mas isso não o faz parar. Pelo contrário. Está a acelerar e a começar novas atividades. E diz-me – a vida não para. Mas tu és um bom homem por perguntares! Ao que respondo. E tu, por fazeres tanto. E já sabes nadar. Por isso, vai para fora de pé, e não pares.