É cíclico: todos os anos assistimos a esta procissão de números, siglas, conceitos, previsões, comentários, ataques, promessas e, claro, debates infindáveis na Assembleia da República, na televisão, na rádio, nos blogues, no Facebook, no Twitter… artigos ilegíveis são produzidos em série, com cada comentador a encontrar nos números algo que escapou aos outros comentadores!… Toda esta algazarra por causa de algo tão simples como uma folha de cálculo à qual decidimos chamar orçamento.

Esquerda e direita degladiam-se acerca de pormenores legislativos, a justiça de este ou aquele imposto e reclamam para si a representação das mais variadas classes sociais, de sectores estratégicos, de desejos dos cidadãos, de aspirações dos jovens, de incertezas dos velhos: os pobres, a classe média, os reformados, os que estão quase a reformar-se, os que estão para nascer, os que já nasceram e se chamam agora de coeficiente familiar, os imigrantes, os emigrantes, os jovens desempregados, os desempregados de longa duração, a função pública, o sector privado; os transportes, o exército, a polícia, a justiça, a pesca, a agricultura, a caça, os municípios, os transportes, a banca, a dívida, os juros da dívida, os pagamentos da dívida, a educação, os rankings da educação, a saúde, as parcerias público-pseudo-privadas; a ordem institucional, a democracia, a serenidade que os políticos sentem, a crise, a Troika, os subsídios, as exportações, o investimento; as empresas, as micro-empresas, as pequenas e as médias empresas, o AICEP, os PALOP, a UE, a China, Angola, o Brazil…; a Caixa Geral de Depósitos que esteve sem gestão sem que isso se tenha reflectido no seu desempenho, o Novo Banco que ninguém quer comprar, os fundos estruturais que ninguém sabe bem o que estruturam, o fundo de pensões que foi saqueado para remodelar casas velhas (isto parece ter gerado consenso entre esquerda e direita…)… o Tribunal Constitucional, as providências cautelares… os gordos, os magros, os que podem ficar gordos, os que estão magros de mais, o açúcar que bebem, as gorduras que comem, o desporto que não fazem… a Tesla, as baterias e, quem sabe, talvez também os pneus… Interrogo-me se me esqueci de algo… a lista é longa, e a memória é curta… Já sei: faltam a Uber, a Airbnb e, claro, a Websummit… e como me fui esquecer disto? Falta também o turismo, se é bom ou se é demais…

Na verdade falta tudo, porque ao Estado nada escapa. E eu todos os anos me interrogo porque é que em vez de andarmos a discutir este ou aquele número, a justiça deste ou daquele imposto, a relevância desta ou daquela fábrica de baterias operada por robots, não discutimos antes o seguinte: qual é a legitimidade do Estado para cobrar impostos, determinar o que estudam os nossos filhos, quantos filhos devemos ter, tratar-nos da saúde, transportar-nos, quem recebemos em nossa casa e quanto lhe cobramos, a quem damos boleia e quanto lhe cobramos, o que comemos ou o que bebemos? Era isto o que deveríamos debater até à exaustão: donde vem a legitimidade do Estado para nos saquear, se endividar em nosso nome e no fim, não satisfeito, ainda determinar onde gastamos o pouco que nos sobrou depois do assalto? O resto que por aí se debate interessa-me muito pouco… são tiros na água…

Professor Universitário

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR