Portugal não é uno e indivisível. Podemos ser o país com as fronteiras mais antigas da Europa — mas os portugueses não vivem todos da mesma maneira, não se divertem todos da mesma maneira e, detalhe importante, não pensam todos da mesma maneira. Temos obrigação de saber há muito tempo que a geografia, o clima, a economia e as práticas religiosas, por exemplo, levaram a uma diversidade que dura há séculos, com óbvias mutações mas com uma persistente estabilidade. Quem quisesse entender, teria o livro “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico”, de 1945, onde Orlando Ribeiro explicou porque é que as coisas são assim. E, como notou Rui Ramos, os mais distraídos teriam nova oportunidade de perceber tudo, anos mais tarde, com o livro “Identificação de um País”, de José Mattoso.
Mas há quem não perceba, nem entenda, nem aprenda. Para aqueles que julgam que Portugal começa na Ponte 25 de Abril e acaba na saída para a auto-estrada do Norte, os portugueses são todos iguais. Não há matança do porco, só há churrascos num grelhador Weber; não há caça, só há festas no Lux; e, acima de tudo, não há touradas, só há peças de teatro no D. Maria II.
O PS que está neste momento instalado no Ministério da Cultura acredita devotamente que a cultura não é o resultado de décadas e séculos de tradições e costumes, aliados a modificações lentas e a inovações súbitas — esta tribo acredita que a cultura é, basicamente, aquilo que os socialistas decidirem. Por isso, no novo contrato de concessão da RTP, o secretário de Estado Nuno Artur Silva introduziu uma frase vaga que, na prática, como o próprio já fez questão de esclarecer, proíbe o canal público de transmitir touradas.
Os espíritos que habitam o Palácio da Ajuda não se inquietam com o facto de o governo estar a passar a mensagem de que considera que um enorme pedaço do país é habitado por indígenas próximos da barbárie. Os números das audiências mostram que as touradas chegam a ter meio milhão de espectadores fora do horário nobre. Sondagens recentes revelam que 30% dos portugueses gostam de touradas. Dados de 2017 provam que se realizaram touradas em todos os distritos do país excepto em Vila Real, Braga e Aveiro. Mas isto não é visto como um obstáculo ou como um alerta para o bom senso — é visto como um desafio para quem quer levar os portugueses para um estado de pureza ideológica, mesmo que para isso seja preciso arrastá-los pelos cabelos que lhes restam.
A tudo isto, soma-se uma conveniência política. Sendo um equilibrista permanente, António Costa já está a fazer contas de cabeça sobre a aprovação do próximo Orçamento do Estado. Terá o apoio do PCP? Terá o apoio do BE? Ao acabar com as touradas na RTP terá, pelo menos, seguramente, o apoio do PAN — e a eterna gratidão da nova líder do partido.
Orlando Ribeiro via “as terras altas e as terras baixas, a serra e a ribeira, o campo e o monte, as montanhas e os vales“. E descodificava as origens de tradições, costumes e culturas muito diversos, cuja marca se prolonga até hoje. Mas esta esquerda urbana não se deixa abalar por esses antecedentes e avança para uma terraplenagem do país, intensamente dedicada à sua nobre missão de pastorear o povo. Nas suas pequenas cabeças, Lisboa é igual a Beja, que é igual a Santarém, que é igual ao Porto, que é igual a Bragança. Para estes governantes, a diversidade do país, que durante séculos foi uma força, é agora uma ameaça. Todos têm de pensar da mesma forma. Todos têm de pensar como eles. Peço desculpa mas eu, que nunca fui a uma praça de touros na vida, não quero ser obrigado a pensar como eles.