Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma
Tem telemóvel? Está sem bateria? Então deixo o seguinte desafio: retire-o de qualquer capa protectora e ligue-o ao transformador. Coloque-o a carregar ligando o transformador a uma tomada da parede. Ao fim de meia hora, o telemóvel está mais quente? O seu aspirador, expele ar quente quando ligado? O seu computador, fica mais quente quando em funcionamento? Então, bem-vindo ao mundo da transformação energética! Bem-vindo à primeira lei da termodinâmica!
De certo modo, podemos dizer que a primeira lei da termodinâmica estabelece que a energia total de um sistema é constante. Ou seja, se durante algum processo de conversão de energia, como por exemplo transformar a energia eléctrica armazenada numa bateria em movimento produzido por um motor, a energia produzida pelo motor for menor do que a debitada pela bateria, então parte da energia da bateria que não se transformou em energia útil para o motor teve que ir parar a algum lado (porque nada se perde). Essa energia, em última instância, transforma-se em calor. Paradoxalmente ao provérbio que titula esta secção do artigo, chamamos “perda” a toda a energia que não é transformada em energia útil para produzir uma função (isto é, para desempenhar trabalho). É por isso que o telemóvel ou o computador aquecem e o aspirador deita ar quente. Nada disso é intencional. Quanto mais calor um sistema (que não seja um forno ou um aquecedor) deitar cá para fora, menos eficiente ele será. Esse calor é proporcional à energia que se perde no processo de transformação.
Num artigo da Forbes ilustra-se de forma pictórica que as perdas totais desde a queima de carvão numa central termoeléctrica até à geração de luz numa casa por via de uma lâmpada incandescente são de 98% (!). No exemplo, em 100 unidades de energia contidas no carvão, apenas 2 unidades são utilizadas de forma útil na produção de luz (que é a verdadeira função útil da lâmpada, já que ninguém as usa para aquecer a casa). A própria lâmpada perde, sob a forma de calor, 34 unidades, e até as linhas de alta tensão têm perdas calculadas em 2 unidades. Novas tecnologias, como as lâmpadas LED, aquecem (ou sejam, perdem) muito menos para a mesma quantidade de luz gerada, pelo que dizemos que são mais eficientes. Seguindo a mesma linha de raciocínio, num veículo de passageiros a gasolina, a eficiência é de apenas 21% de acordo com este artigo que encontrei na internet (à parte o rigor científico dos números, que é discutível, o importante é reter que a energia necessária para gerar trabalho é sempre mais elevada do que a produzida de forma útil, e que isso se deve a perdas sucessivas nos processos de transformação). Ou seja, nada se perde, tudo se transforma… até mesmo em perdas.
Nem tudo o que parece é
Estávamos em 2002 quando fiz um estudo para o meu Mestrado, em conjunto com o (agora Doutor) Nuno Pedrosa (se me estiveres a ler, um abraço!), em que comparávamos o impacto ambiental entre duas trotinetes equivalentes, mas com uma diferença substancial: uma movida a gasolina, e a outra eléctrica. Bem sei que já foi há 20 anos. Bem sei que a base de dados que tínhamos acerca da produção de energia em Portugal remontava a 1995. No entanto, e para nossa surpresa, concluíamos que a trotinete movida a gasolina emitia menos dióxido de carbono (!) do que a trotinete eléctrica. Mais: nem sequer estávamos a considerar todo o ciclo de vida desde o nascimento (cradle) até à morte (grave), em que há outros problemas que têm que ver com a mineração de Lítio, produção de baterias e sua reciclagem, etc. A nossa análise era o que se chama “gate-to-gate”, em que simplesmente nos preocupávamos com o ciclo de carga/abastecimento de energia potencial (eléctrica, no caso da trotinete movida a bateria, ou química, no caso da trotinete movida a gasolina) e sua transformação em energia cinética (isto é, em movimento da trotinete). A lição a tirar não foi que os veículos eléctricos são mais poluidores. Pelo contrário, o problema não está nos veículos em si serem eléctricos. O problema está nos processos de produção de energia. Quando estes são fundamentalmente assegurados por combustíveis fósseis, e se combinarmos com isso a baixa eficiência de baterias e todas as perdas desde a produção de electricidade até ao seu armazenamento em baterias e transformação em energia útil (daí a secção anterior deste artigo), nesse caso os veículos eléctricos podem efectivamente emitir mais dióxido de carbono durante a sua utilização do que os a gasolina. A sensação de que um veículo eléctrico, tal como uma trotinete, têm emissões zero é, portanto, uma ilusão e depende em grande medida nos meios utilizados para a produção de energia. No caso dos veículos eléctricos também há emissões, só que estas estas são transferidas para longe, normalmente para a província onde se encontra a central eléctrica a produzir trabalho e, com isso, perdas. Este fenómeno é corroborado, por exemplo, por este artigo no New York Times que discute quão verdes são afinal os veículos eléctricos (conclui-se que são, apesar de…).
Uma vez que os veículos eléctricos vêm aí em força nos próximos 10 a 20 anos, é preciso que haja políticas de transição energética sustentáveis para assegurar o aumento substancial na procura que vai haver por electricidade. Temos que ter menos centrais eléctricas com emissões directas de CO2 durante o processo de produção de energia, como sejam centrais a carvão, e mais centrais eléctricas verdes, mas que assegurem, ao mesmo tempo, a produção de energia sustentada. Porque trotinetes eléctricas podem até ter mais emissões que a gasolina, pois nem tudo o que parece é.
Não se pode ter sol na eira e chuva no nabal
Falando de energia verde e de produção de energia sustentada, há um paradoxo evidente e que todos conhecemos bem. As energias renováveis vieram para ficar, e vão sem dúvida (e bem) ser um meio de produção de energia fundamental. No entanto, em tempos de seca, sem vento, sem sol, durante a noite, sem ondas do mar, é preciso ter meios alternativos que assegurem a disponibilidade de energia eléctrica na rede. Isso só se consegue com meios de produção que não dependam da aleatoriedade dos elementos: com a tecnologia actual, centrais termoeléctricas “clássicas” (carvão, gás natural, óleo combustível, biomassa, incineração de resíduos, etc.) ou de fissão nuclear (a fusão ainda é uma miragem). Só assim conseguimos assegurar que todos tenhamos a possibilidade de manter o frigorífico ligado 24 horas por dia, que a televisão e a internet estejam disponíveis sempre que queiramos, que o aquecimento ou ar condicionado se liguem à distância de um clic, ou que os nossos veículos (no futuro, eléctricos) estejam sempre prontos a nos transportar.
Não coloquem os ovos todos no mesmo saco
Por muito meritório que seja apostar nas renováveis, não devemos colocar todos os ovos no mesmo saco – num único saco, no saco das renováveis. Devemos, como Nação soberana, independente e responsável, e demonstrado que está o problema da dependência energética em outros Países, nomeadamente autocráticos, adensado pela invasão da Rússia à Ucrânia, assegurar não só a sustentabilidade energética como também a nossa independência de terceiros. Ou seja, renováveis sim, mas é importante diversificar em todo o leque de apostas verdes.
O seguro morreu de velho
A central do Pego em Abrantes foi fechada aqui há uns meses. Com o fecho desta central, Portugal deixa de ter qualquer produção de electricidade a carvão. É um gesto nobre para o planeta. Mas será que esta decisão foi pensada com pés e cabeça? Será que assegurámos meios alternativos de produção? O que assistimos foi que, com isto, teve que se recorrer mais às hídricas. Ora, logo por azar, em ano de seca. O que levou a que as hídricas tivessem que fechar as comportas e desligar as turbinas, quando se percebeu que a agricultura e muitas populações estavam a ficar, de forma dramática, sem água. E agora? Agora é importar energia, muita da qual produzida através de cisão Nuclear (vinda de França). Estas coisas acontecem porque os estados têm tomado decisões sem pensar a montante. Provavelmente, não leram o meu estudo de Mestrado sobre trotinetes e esqueceram-se que o seguro morreu de velho.
Quem não tem cão, caça com gato
Outro exemplo foi o que se passou na Alemanha (e agora está a pagar uma fatura bem cara, com a guerra na Ucrânia). Angela Merkel, formada em Física e Doutorada em Química Quântica (o que foi muitas vezes usado como argumento de autoridade), decidiu começar a fechar reactores nucleares em plena crise energética. Resultado prático imediato? Aumento substancial nas emissões de CO2 por via da necessidade de responder às necessidades de produção energéticas: toca a queimar carvão outra vez! Porquê? Porque as renováveis não chegam para assegurar as necessidades imediatas (e instantâneas). Portanto, a única alternativa é voltar aos combustíveis fósseis, porque quem não tem cão, precisa de caçar com gato.
Nem tudo o que luz é ouro
Sem energia nuclear na Alemanha, e com as metas de redução de CO2, a Alemanha já anunciou que vai entrar em incumprimento em 2022 e 2023. Isto foi antes da guerra na Ucrânia, e das sanções que vão acentuar (e de que maneira) os problemas energéticos. Para conseguir suprir essas necessidades e ao mesmo tempo cumprir as metas de CO2 a Alemanha precisaria de instalar 1000 a 1500 turbinas eólicas por ano (e, ao mesmo tempo, rezar para ter vento a soprar continuamente). Ora, acontece que as energias renováveis também têm contribuição para o impacto ambiental. Mesmo ignorando a produção e fim de vida (as hídricas, por exemplo, têm uma pegada colossal), há impacto ambiental ainda que não seja por via de emissões de carbono durante a fase útil de produção energética. Ecossistemas, leitos de rios, flora, fauna, populações, etc., são afectados, muitas vezes de forma dramática. Aparecem novas doenças (como por exemplo a vibro-acústica) e, visualmente, convenhamos: um parque eólico ou solar, não é fonte de poluição visual? Portanto, temos que ter alguma cautela na maneira como consumimos o slogan de ‘emissões zero’ ou ‘energia verde’ (‘energia esverdeada’ seria mais preciso). Acreditar em ‘emissões zero´ como se vê na traseira de alguns automóveis (mentira descarada) é dogmatismo religioso. Não existe nada feito pelo homem que não tenha pegada ecológica. Há sempre uma fatura a pagar (para além da conta da luz e da taxa audiovisual). Porque nem tudo o que luz é ouro.
Mais vale tarde do que nunca
Pois é: a Comissão Europeia “decretou” que a energia nuclear (e até o gás natural, para espanto de muitos) podem ser consideradas como produtoras de ‘energia verde.’ A decisão é discutível, mas se tivermos em consideração a tecnologia alternativa actual e se estivermos apenas a falar do processo de transformação de combustível em energia eléctrica (a tal abordagem gate-to-gate), então a energia nuclear, dentro desses parâmetros muito favoráveis, é sem dúvida energia verde (não emite CO2 como produto da transformação do combustível em electricidade). No entanto, tal decisão já vem tarde, pois há muitos mitos e medos que por aí circulam. Mas mais vale tarde do que nunca.
Águas passadas não movem moinhos
Temos que saber esquecer os acidentes de Chernobyl e Fukushima e andar para a frente. São acidentes raros que, muito embora tenham tido grande impacto no local e vizinhança do acidente e que se propaga no tempo, esse impacto é relativo se pensarmos nele em função da energia total produzida ou em comparação com outras causas de morte, bem mais mundanas, como andar a pé, andar de carro, acidentes de trabalho, ou poluição atmosférica (que o nuclear não faz). Um artigo da Forbes tenta demonstrar não só isto, como também afirmar que a energia nuclear é o meio mais seguro para produzir energia, de todos! Como diria o Fernando Pessa, ‘E esta, hem’?
Quem não arrisca não petisca
As centrais actuais já vão na quarta geração e incluem inúmeras tecnologias redundantes de segurança. O risco de acontecer um acidente com fuga de radiação é muitíssimo reduzido. Claro que há guerras, como a que está a acontecer actualmente, que nos lembram os riscos da emissão de radiação quando vemos com horror que o exército Russo faz ataques negligentes junto a centrais nucleares na Ucrânia. Mas se vivermos permanentemente no medo, isso não nos resolve problemas nenhuns. Em primeiro lugar, essa postura é a mesma que a que justificaria deixarmos de ir à rua para evitar sermos atropelados ou que nos caia um vaso em cima da cabeça, pois são riscos que, embora baixos, existem. Em segundo lugar, temos mesmo aqui ao lado, em Espanha, centrais nucleares que, a acontecer um acidente (ou ataque beligerante) nos vai atingir em Portugal, pois a radiação não precisa de passaporte para passar a fronteira. Ao menos que tenhamos o proveito da energia nuclear (que até já temos, mas é importada de França, o que nos coloca numa posição de dependência e com elevados custos para o consumidor). É por isso que defendo que devemos aproveitar este ‘abrir de olhos’ para finalmente investirmos em energia esverdeada, como é a energia nuclear. Vai tornar a fatura da energia mais baixa, vai-nos dar independência energética sustentável, e até gerar postos de trabalho.
Amigos, amigos, negócios à parte: uma matrioska de pensamentos
Quando pensamos em amigos, logo podemos ser levados a pensar em convívio. E logo podemos ser levados a pensar em festas. E depois em aniversários. E depois em presentes. E depois em brinquedos. E depois em bonecas. E depois na matrioska. E depois na Rússia. E depois na Ucrânia. E depois em guerra na Europa. E depois na NATO. E depois em sanções. E depois em gás. E depois em Nord Stream. E depois em Gazprom. E depois em Schröder. E depois em corrupção. E depois em torneira fechada. E depois em dependência. E depois em alternativas. E depois em Mercosul. E depois em França. E depois em mais dependência. E depois em importação. E depois em custos elevados.
E depois que até os nossos amigos se regem por interesses próprios. E logo podemos ser levados a pensar em nós. Porque amigos, amigos, negócios à parte.
Uma pessoa prevenida vale por duas
A matrioska de pensamentos acima, mostra bem que, por muito amigos que sejam num dado momento os nossos parceiros, de rompante esta amizade pode terminar. É nessas alturas, como seja a que vivemos no momento actual, que se calhar não teria sido má ideia não nos tornarmos tão dependentes de terceiros. É por isso mesmo que, não só para Portugal, mas como para toda a Europa, apostar na independência energética é crucial. Se tivermos em consideração as alterações climáticas (acho que já ninguém tem dúvidas de que estão realmente a acontecer e de que já estão e podem trazer consequências muito complicadas no futuro se não se puser um travão às emissões de gases que contribuem para o efeito de estufa) e que vai haver um acréscimo substancial na procura de energia eléctrica (motivada pela generalização do veículo eléctrico), então só há uma alternativa razoável para Portugal singrar de forma independente na transição energética: cumulativamente à sua liderança na introdução de energias renováveis (que deve continuar, e bem), deve também finalmente e de uma vez por todas vencer medos e apostar na energia nuclear. Por prevenção.
Em casa de ferreiro, espeto de pau
Temos Urânio em Portugal, nomeadamente uma reserva de 200 toneladas na Urgeiriça. Já tivemos um reactor nuclear às portas de Lisboa, em Sacavém (sabia?), que foi desmantelado em 2019. Temos cientistas do Instituto Superior Técnico a participar num projecto de fusão nuclear (ITER) em Cadarache, França. Por outras palavras, temos combustível e temos know-how. O que nos pára? (ok, esta pergunta é combustível para discussão, mas não é isso que se pretende?)
Quem diz as verdades, perde as amizades
Já em preparação para as caixas de comentários, termino com este ditado: quem diz as verdades, perde as amizades.
Este meu texto, que espero tenha entretido o leitor pela maneira como foi escrito, é apenas um ponto de vista que reúne de forma muito resumida argumentos que admito possam nem sempre ser os mais fortes. Em vez de optar por uma abordagem objectiva, optei por uma reflexão subjectiva em que o argumento se consolida com base em ditados populares, tão sábios que são. Espero que tenha sido bem-sucedido, pelo menos para alertar para os problemas que vivemos hoje e que vamos ter que enfrentar no futuro: dependência energética, sustentabilidade energética, alterações climáticas, veículos eléctricos, e, finalmente, preço da electricidade para o consumidor final. Ficou de parte a reciclagem ou deposição de resíduos nucleares ou baterias, mas como todo este artigo se focou na produção de energia gate-to-gate, essa é uma discussão que só podemos fazer, honestamente, com uma abordagem cradle-to-grave, e aí o assunto torna-se substancialmente mais complexo (neste momento, veículos movidos a combustível fóssil deixam menos pegada ecológica!).
Gostaria, finalmente, de assegurar que não tenho qualquer participação em nenhuma empresa no ramo da energia e que se a energia nuclear vier para Portugal não antecipo, com isso, vir a obter qualquer prémio ou remuneração com o facto de parecer querer promover esta forma de energia de forma tão apaixonada. Não sou pelo nuclear. Sou pelo ambiente e pela sustentabilidade energética de que tanto precisamos. Por isso mesmo, dados os desafios listados acima e permitindo-me uma alusão a Sir Winston Churchill, a energia nuclear é a pior de todas as formas de produção de energia, à excepção de todas as outras experimentadas ao longo da história.