Há menos de um ano, após a invasão da Ucrânia pela Federação Russa, o Comité Olímpico Internacional (COI), a 28 de fevereiro de 2022, com a consciência pesada por ter, anos a fio, vivido de braço dado com Vladimir Putin e os oligarcas russos, num comunicado à imprensa recomendou às Federações Internacionais (FI) e aos Comités Olímpicos Nacionais (CONs) que não convidassem ou permitissem a participação de atletas e oficiais russos e bielorrussos nas competições que decorressem sob a sua responsabilidade. E muitos dirigentes dos CONs dos mais diversos países, inconscientemente, aderiram à absurda sugestão do COI que punha em causa cento e trinta anos de vida do Movimento Olímpico moderno. Por cá, o insigne presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP), José Manuel Constantino, aderiu entusiasticamente à exclusão dos atletas russos e bielorussos e até se apressou a afirmar que o “mundo não compreenderia” outra decisão do COI relativamente ao conflito na Ucrânia. E, solenemente, declarou: “Acho que (o COI) não tinha outra saída. Há uma violação da Carta Olímpica, da Trégua Olímpica, há uma violação da soberania de um país [Ucrânia]. Portanto, não restava às autoridades desportivas outra solução que não fosse afastar os países que estão na origem destas violações” (Lusa, 03-03-2022). Claro que Constantino não especificou quais as Regras da Carta Olímpica violadas bem como em que sentido a Trégua Olímpica não estava a ser respeitada. E quanto à violação da soberania da Ucrânia o que aconteceu foi que o COI, à revelia da própria Carta Olímpica, se imiscuiu num assunto em que devia demonstrar a mais estrita neutralidade. A este respeito, a Assembleia Geral da ONU, desde 1993, um ano antes de cada edição dos Jogos Olímpicos, até tem adotado por consenso uma resolução intitulada “Construindo um mundo melhor e pacífico por meio do desporto”. Ora, se alguma entidade se esqueceu da sua história, da sua vocação, da sua missão e das suas competências reconhecidas na lei de vários países do Mundo foi o próprio COI, imediatamente secundado por vários CONs mais ou menos distraídos que, em vez de contribuírem para a construção de um “Mundo melhor e mais pacífico”, optaram por catalisar a guerra com a exclusão dos atletas russos e bielorussos das competições desportivas.

Quando Pierre de Coubertin, em finais do século XIX, no quadro do industrialismo, desencadeou o ressurgimento dos Jogos Olímpicos da antiguidade grega na era moderna, envolveu-os numa espécie de religiosidade laica, concebida entre a cosmologia da Grécia antiga, o cristianismo muscular da pedagogia da não diretividade pela responsabilização dos alunos das escolas públicas inglesas de meados do século XIX e da dinâmica do capitalismo associada à paz, à superação e ao progresso. E, para o efeito, fez sentar à mesa de conversações vários líderes de países europeus até então envolvidos em guerras fratricidas, a fim de os convencer a transporem para os terrenos de jogos as lutas belicistas que, até então, eram travadas nos campos de batalha. Tal objetivo não evitou que as duas Grandes Guerras tivessem rebentado durante a primeira metade do século XX, mas permitiu que o desporto, enquanto produto do moderno olimpismo, sobretudo durante a segunda metade do século XX, tivesse tido uma função política catalisadora, como aconteceu em 1971 com a diplomacia do ping-pong que, no domínio do “soft power”, permitiu que a China (RPC) começasse a abrir as portas ao Mundo.

Na realidade, o que aconteceu em 28 de fevereiro de 2022, perante uma ignorante indiferença da generalidade dos dirigentes desportivos, ficará para a história do desporto como uma das maiores injustiças alguma vez cometida sobre os direitos dos atletas. Em primeiro lugar porque, contra a Carta Olímpica, numa desumanidade inqualificável, se confundiu os atletas russos e bielorussos com os regimes e estes com os países e, em segundo lugar, na maior das irresponsabilidades, destruíram o mais precioso legado da Grécia antiga, um legado anterior às grandes narrativas religiosas do Ocidente, a Trégua Olímpica, a “Ekecheiria” que, de acordo com a Carta Olímpica, devia garantir a “a preservação da dignidade humana” (princípio II) e um desporto livre de “toda e qualquer forma de discriminação relativamente a um país ou a uma pessoa com base na raça, religião, política, sexo ou outra” (princípio VI).

Para Pierre de Coubertin o Olimpismo, enquanto espécie de religião laica, era portador de determinados dogmas como, entre outros, o da inviolabilidade da Trégua Olímpica. Um dogma que Coubertin, já no final da sua vida, defendeu empenhadamente ao afrontar aqueles que queriam boicotar os Jogos Olímpicos de Berlim (1936). E, devido a essa sua ousadia, acabou por nunca ter sido agraciado com o Prémio Nobel da Paz, apesar de terem existido diversas propostas. Desde logo, em 1936, na 36ª Sessão do COI que aconteceu em Berlim, onde foi decidido propor o nome de Coubertin ao Comité Norueguês Nobel da Paz. E, entre outras, em 1961, Francisco Nobre Guedes, ao tempo presidente do Comité Olímpico Português, também ele fez uma proposta ao COI a fim de ser desencadeado um processo conducente à atribuição a título póstumo do Prémio Nobel da Paz a Pierre de Coubertin.

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Pierre de Coubertin defendeu com a máxima intransigência o princípio da independência do Movimento Olímpico que, entre outros aspetos, se afirma pela Trégua Olímpica que tem as suas raízes na cultura atlético-militar da Grécia antiga. De acordo com Heródoto, pouco antes da Batalha das Termópilas, com o inimigo dentro de portas, os gregos hesitavam no envio de reforços, pois era altura da celebração dos Jogos que aconteciam independentemente de quaisquer conflitos. Quer dizer, quem quebrou o princípio da Paz Olímpica foi o próprio COI e os CONs que, de consciência pesada e tomando partido por uma das partes, inverteram a lógica do problema prejudicando milhares de atletas e oficiais russos e bielorrussos completamente inocentes. E fizeram-no sabendo que durante todo o século XX, principalmente no período da Guerra Fria, nunca o COI se deixou envolver ou influenciar por conflitos interpaíses desencadeados pela lógica imperialista tanto dos EUA como da URSS.

Entretanto, passado menos de um ano, o COI, pressionado pelas situações de profunda injustiça que desencadeou contra atletas que nada tinham a ver com as decisões dos governos dos respetivos países, bem como pelas inconveniências financeiras que tal decisão estava a desencadear, resolveu mudar de opinião e, a 25 de janeiro de 2023, emitiu um comunicado em que, sem qualquer pedido formal de desculpas, declarou que “nenhum atleta pode ser impedido de competir apenas por causa do passaporte” pelo que, no respeito pelos seus direitos, todos eles devem ser “tratados sem qualquer discriminação, de acordo com a Carta Olímpica”. E, para evitar quaisquer dúvidas futuras quanto às suas prerrogativas, ainda acrescentou que “os governos não devem decidir quais atletas que podem participar e quais as competições em que o podem ou não fazer”.

Perante esta nova posição do COI, os presidentes de vários CONs, sem quaisquer problemas de consciência, apressaram-se a dar o dito por não dito e passaram a utilizar um novo discurso politicamente correto. Entre nós, Constantino, umas horas depois do comunicado do COI apressou-se a declarar: “o COP apoia a reintegração de atletas russos e bielorrussos” (…) “O desporto deve ser um fator de pacificação e aproximação entre as partes desavindas. Tudo o que tem sido feito – não no sentido de encontrar soluções equilibradas e pacíficas, mas de armar uma das partes contra a outra – não me parece que deva resultar. E está à vista o que está a acontecer…” (DN/Lusa, 2023-01-27). O problema é que há um ano já se estava perante uma situação que só os ignorantes não viam ou não queriam ver.

Entretanto, como “Roma traditoribus non premiae”, a 30 de janeiro de 2023, através da Radio Internacional France, o Mundo ficou a saber que Mykhaylo Podolyak, o principal conselheiro do presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy , acusou o COI de ser “um promotor da guerra, da morte e de destruição. O COI assiste com prazer à destruição da Ucrânia pela Rússia oferecendo-lhe uma plataforma (os Jogos Olímpicos) para promover o genocídio e encorajar mais assassinatos. (…) Obviamente, o dinheiro russo que compra a hipocrisia olímpica não cheira a sangue ucraniano. Certo, Sr. Bach?”. Claro que o COI, no dia seguinte, emitiu um comunicado rejeitando “as declarações difamatórias” do principal conselheiro do presidente ucraniano. Na verdade, o que aconteceu foi que uma instituição que não soube dar-se ao respeito, não pode esperar ser respeitada. Nunca nenhum líder do COI, mesmo nos difíceis anos cinquenta, ao tempo do “conflito das duas Chinas” quando a instituição foi liderada primeiro por Sigfrid Edström e, a partir de 1952, por Avery Brundage, o discurso político desceu a tão baixo nível.

Entre nós, o último ato desta olímpica confusão, até ver, surgiu num texto publicado e replicado na net em finais de janeiro, da autoria de Constantino, em que este procura convencer-nos que o seu inacreditável reposicionamento e, presume-se, o da instituição que dirige, se ficou, simplesmente, a dever a uma mudança sentimental de opinião, tal como se muda de opinião relativamente à pena de morte, à eutanásia, a uma ideologia política e, já agora, digo eu, à situação de um “fora de jogo” num desafio de futebol. O problema é que, em 2022, se estava perante uma dramática situação que era o conflito na Ucrânia que, em matéria de Olimpismo, obrigava a conhecer, compreender e a considerar o enquadramento histórico-epistemológico da questão em todos os seus pormenores, pelo que não podia ser tratada pelos responsáveis do Movimento Olímpico, quer internacionais, quer nacionais da maneira que foi. Assim sendo, é inaceitável que o presidente do COP venha, agora, com um discurso incompreensível, tentar ultrapassar uma posição política decidida em fevereiro de 2022 que nunca devia ter acontecido. Tal como não é aceitável que, na base de um relativismo de conveniência, procure impor a sua própria verdade a fim de convencer quem quiser ser convencido de que uma tão rápida e radical mudança de opinião não se tratou de um oportunismo porque “em algumas circunstâncias, o não ser coerente é uma virtude”.

Constantino parece não ter compreendido que a verdadeira incoerência não está na mudança de posição acontecida em janeiro de 2023, já que se tratou, tão só, de corrigir um dos maiores erros alguma vez cometidos no âmbito do Movimento Olímpico internacional. A verdadeira incoerência aconteceu em fevereiro de 2022, quando os dirigentes olímpicos internacionais e nacionais por esse mundo fora, alguns deles há vários Ciclos Olímpicos agarrados ao poder, perante o conflito entre a Rússia e a Ucrânia, à revelia da história do Movimento Olímpico que deviam conhecer e da Carta Olímpica que deviam respeitar, a fim de desviarem as atenções de um passado que não queriam recordar, decidiram tomar partido por uma das partes sacrificando no altar da hipocrisia os atletas russos e bielorussos. Ao fazê-lo, comprometeram um dos mais preciosos legados da Grécia antiga e criaram as condições para que o Movimento Olímpico internacional, por destruição da sua ancestral singularidade no domínio dos direitos humanos, possa vir a desaparecer.