A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (NU), considera o desporto um importante facilitador do desenvolvimento, reconhecendo-lhe uma crescente contribuição para a realização da paz, a erradicação da pobreza, o reforço da educação, a promoção da saúde, a inclusão social, o cultivo da tolerância, a promoção da felicidade e da autoestima dos povos.

Ao contrário do enquadramento protofascista que, por vezes, lhe pretendem dar ao transformá-lo num “desígnio nacional”, o desporto deve ser considerado como um catalisador social interclassista que, do ensino e da prática de base ao alto rendimento e ao profissionalismo, através de uma dinâmica de geometria variável em função dos praticantes, dos contextos e dos objetivos, deve ser colocado ao serviço do desenvolvimento humano.

Pierre de Coubertin (1863-1937), antes de, em 1894, ter desencadeado a fundação do Comité Olímpico Internacional (COI), em 1890, ele foi um dos fundadores da Union des Sociétés Françaises de Sports Athlétiques (USFSA), para a qual, no exercício das funções de secretário, concebeu o emblema da instituição constituído por dois anéis entrelaçados que encimavam a expressão Ludus pro Patria.

Muito provavelmente, Coubertin foi buscar a frase ao título da pintura do francês Pierre Puvis de Chavannes (1824-1898) que, surgida em 1883, numa evocação da França antiga e num ambiente rural comunitário, retrata um grupo de jovens a exercitarem-se no lançamento de um dardo.

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O sentido da expressão também foi utilizado, em diversos contextos e com vários sentidos, na arte, na literatura e, entre outros, em textos históricos com o objetivo de caracterizar as diversas atividades, entre elas as desportivas, realizadas ao serviço da pátria.

Para Coubertin o Ludus pro Patria não visava “a defesa da pátria nos campos de batalha”, pois, no quadro do desporto moderno, tinha como missão tão só a de  “garantir a sua grandeza”. A motivação pessoal para a prática desportiva “devia estar no próprio desporto” e não na ambição fosse ela qual fosse, viesse ela de onde viesse.

Coubertin, em vários dos seus textos, utilizou a expressão que, através de um saudável nacionalismo patriótico, viria a envolver o credo do Movimento Olímpico (MO) que, desde então, de quatro em quatro anos, anima as festas à escala mundial que são os JO de Verão (Jogos da Olimpíada) e os de Inverno.

Todavia, o Ludus pro Patria também passou a ser utilizado por diversas entidades no sentido de colocarem o desporto, não ao serviço das pessoas e dos países, mas de estranhas ambições pessoais e de obscuros desígnios políticos, sendo que, regra geral, as coisas acabaram mal.

Desde logo porque, os atletas, referiu John Hoberman (1984), em muitas circunstâncias foram transformados em guerreiros por procuração e mercenários que acabaram a travar batalhas nas “arenas” desportivas internacionais ao serviço de regimes mais ou menos fascistoides, tanto de direita quanto de esquerda.

E, em muitas circunstâncias, o desporto passou a ser gerido a partir de máximas de características belicistas e chauvinistas tais como: “ganhem ou morram”, “levantem-se e marchem”, “o corpo ao serviço da pátria”, “pelo trabalho e pela defesa”, “personalidades ambiciosas de realizarem altas performances para a glória da pátria”, “ganhar a superioridade olímpica com o objetivo de dar ao mundo uma prova de força interior e vitalidade” ou outras de igual mau gosto como a do desporto ser um “desígnio nacional”.

Segundo Manfred Ewald, ex-presidente da Federação de Desporto e Ginástica da República Democrática Alemã (RDA) de 1963 a 1988, o desporto no país tinha como missão “trabalhar para a educação de personalidades socialistas, ambiciosas de realizarem altas performances para a glória da RDA”. Em 2000 Manfred Ewald, enquanto responsável pelo programa de doping na RDA, acabou por ser julgado e condenado. Por outro lado, de acordo com Willi Weyer, ex presidente da Federação Alemã de Desportos da República Federal da Alemanha (RFA) de 1974 a 1986, o desporto no país tinha como missão “proporcionar alegria, felicidade e libertação ao maior número possível de indivíduos”.

Após a queda do Muro de Berlim e da desagregação da União Soviética, ao tempo em que se anunciava o fim da história, o desporto passou a ser encarado pelos governos da generalidade das democracias liberais, em primeiro lugar, como um entorpecente político-social e, em segundo lugar, como um catalisador de negócios do neomercantilismo que, desde então, tem vindo a tomar conta da economia mundial.

Em consequência, a partir dos anos noventa, o discurso começou a mudar de paradigma pelo que a visão pedagógica e social suportada no volume da prática desportiva de base deu origem ao discurso do rendimento, da medida, do record e das medalhas olímpicas.

Nesta linha de pensamento, em 2003, um consórcio de universitários, a partir da Bélgica /Flamenga, certamente influenciado pelo “hoplitódromo” (corrida de guerreiros armados do programa dos JO da Grécia antiga) e pelos combates interpaíses nos JO ao tempo da Guerra Fria, adotou a metáfora “The Global Sporting Arms Race” a fim de enquadrar um projeto intitulado Sports Policy Factors Leading on International Sporting Sucess (SPLISS) ao qual já aderiram mais de 20 países e, quer direta, quer indiretamente, várias Universidades, Comités Olímpicos Nacionais (CONs)  e entidades públicas, bem como, centenas de investigadores e decisores políticos locais e nacionais.

O SPLISS, procura responder a duas questões fundamentais: (1.ª) O que torna uma política desportiva direcionada para o alto rendimento eficaz e eficiente? (2.ª) Como podem os países melhorar as suas hipóteses de ganhar medalhas no desporto internacional?

Para responder às referidas questões, o modelo SPLISS organiza-se através de nove indicadores (pilares): (1.º) Finanças como indicador de input e oito indicadores de processo; (2.º) Políticas públicas; (3.º) Participação desportiva; (4.º) Identificação e desenvolvimento de talentos; (5.º) Apoios aos atletas incluindo pós carreira; (6.º) Instalações; (7.º) Número de quadros e sua formação; (8.º) Competição internacional; (9.º) Investigação científica, inovação e tecnologias. Os resultados nos JO e Campeonatos do Mundo são o indicador de output do modelo SPLISS.

Entretanto, o tradicional provincianismo que, de acordo com o poeta, caracteriza o “superior mal português”, não perdeu tempo e, dois anos depois, em janeiro de 2005, os responsáveis pelo Instituto Nacional do Desporto (IND) e do Comité Olímpico de Portugal (COP) assinaram um programa de preparação olímpica que, certamente, inspirado na estória da galinha dos ovos de ouro, pretendia, nos JO de Pequim (2008), ganhar cinco medalhas olímpicas.

Desde então, o sistema desportivo português, passou a estar condicionado por um programa de preparação olímpica que, em cada ciclo olímpico, sem qualquer avaliação externa, independente e competente, acabou por ser reafirmado e reforçado pelos diversos Governos.

Ora, perante a abolia política dos sucessivos Governos para quem, em matéria de políticas públicas, o desporto é bola, o sistema desportivo nacional, estrangulado por um centralismo funcional sem políticas integradas, sem competências institucionais, sem capacidades sistémicas, sem resultados claramente determinados no espaço e no tempo e sem uma previsão dos custos e fontes de financiamento, passou a funcionar a partir de uma hierarquia virtual invertida em que a liderança da estrutura associativa, sem vocação, competências ou qualquer legitimidade democrática assumiu o superego de um Ministro do Desporto.

Passados cerca de vinte anos, a 30 de janeiro de 2024: (1.º) Sem que as cinco medalhas previstas para os JO de Pequim (2008) tenham sido alcançadas; (2.º) Sem que os resultados nos JO tenham deixado de ser medíocres e; (3.º) Sem que a prática desportiva de base tenha aumentado relativamente aos anos noventa, o presidente do COP publicou no portal da instituição um documento intitulado Contributos do Comité Olímpico de Portugal para os Programas Eleitorais. E preconizava um conjunto de temas a serem considerados nos programas eleitorais dos partidos políticos e pelo futuro Governo que devia promover uma “séria reflexão, traduzida em medidas objetivas”.

E o presidente do COP entendia que os partidos políticos e o futuro governo deviam ter em conta as seguintes questões: (1.º) Estatuto do dirigente desportivo voluntário; (2.º) Financiamento do desporto; (3.º) Orgânica do Instituto Português do Desporto e Juventude. E recomendava ao Governo “uma séria reflexão, traduzida em medidas objetivas, sobre as seguintes matérias: (1.ª) Regime fiscal aplicável à atividade física e desportiva em Portugal; (2.ª) Estatuto de Utilidade Pública Desportiva; (3.ª) Proteção do nome, imagem e atividades desenvolvidas pelas Federações Desportivas; (4º) Tribunal Arbitral do Desporto; (5.ª) Integridade no Desporto; (6.ª) Sustentabilidade ambiental; (7.ª) Mulher no Desporto; (8.ª) Programa Nacional de Formação de Treinadores (PNFT).

A “sui generis” proposta do presidente do COP que contrasta com o projeto SPLISS trata-se de um pastelão burocrático sem qualquer sentido que nunca resolverá os dois principais problemas que estão na base do estado de subdesenvolvimento do desporto nacional: (1º) 73% dos portugueses diz não praticar qualquer atividade física ou desportiva; (2º) Na sua relação custo benefício os resultados nos JO expressam a desastrosa irracionalidade das políticas públicas.

A olímpica proposta destinada aos partidos e ao XXIV Governo está bem longe das melhores práticas indicadas pelo SPLISS e confirmadas por mais de vinte países onde o modelo foi aplicado. Para além de um ou outro aspeto positivo, na sua globalidade jamais tirará o desporto da situação de indigência em que se encontra.

Consequentemente, o documento do presidente do COP, mereceu a indiferença da generalidade dos partidos que lhe prestaram pouca ou nenhuma atenção.  Só o partido CHEGA encontrou nele a inspiração necessária à construção do seu próprio programa eleitoral para o desporto ao adotar como mantra “Tornar o Desporto um Desígnio Nacional” ideia que foi certamente buscar ao discurso político do COP, expresso, entre outros documentos, no Valorizar e Afirmar Socialmente o Desporto – Um Desígnio Nacional (Cf. COP, março de 2015).

Todavia, tal como aos Governos não compete transmitir orientação para os CONs dos respetivos países cuja independência, regra geral, é reconhecida, assim também, não compete aos CONs, desde logo porque é contra a sua natureza, apresentar aos partidos políticos e aos Governos dos respetivos países contributos para os programas eleitorais ou recomendações políticas para a futura governação.

A este respeito situação portuguesa é clara:
a)De acordo com o artigo 79º da Constituição (Cultura Física e Desporto) “incumbe ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e coletividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto …”;
b)Segundo o artigo 12º da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto “o COP é uma associação sem fins lucrativos, dotada de personalidade jurídica, que se rege pelos seus estatutos e regulamentos, no respeito pela lei e pela Carta Olímpica (CO);
c)No quinto princípio da CO pode ler-se: “… as organizações desportivas do Movimento Olímpico devem aplicar a neutralidade política” e;
d)De acordo com a Regra 27 (5) da CO, os CONs “poderão cooperar com órgãos governamentais, com os quais estabelecerão relações harmoniosas”, mas “não se associarão a nenhuma atividade que esteja em contradição com a CO, finalmente;
e)Em conformidade com Regra 27 (6) da CO os CONs “devem preservar a sua autonomia e resistir a todas as pressões de qualquer tipo, incluindo, entre outras, pressões políticas, jurídicas, religiosas ou económicas”;
f)De acordo com a Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, compete ao COP, em regime de exclusividade, “constituir, organizar e dirigir a delegação portuguesa participante nos Jogos Olímpicos”. O que não significa que o COP possa assumir um programa de preparação olímpica completamente desintegrado não só do desporto português como do próprio país.
g)Destacamos, ainda, duas obrigações do COP fundamentais: (a) Organizar cursos para administradores desportivos; (b) Manter atualizado o registo dos praticantes desportivos olímpicos.  Se tal tivesse acontecido, pelo menos, nos últimos dez anos, hoje, o desporto nacional estaria a viver uma cultura de conhecimento e não de desenrascanço em que o presidente do COP, exorbitando as suas competências, em vésperas de eleições legislativas, produz um documento contranatura com orientações para os programas dos partidos e para a ação do futuro Governo.

Em contraponto com a generalidade dos partidos e dos agentes desportivos, ao estilo das tragicomédias da Grécia antiga, numa prática que em Portugal já vem de 2001, o documento do presidente do COP foi objeto de rasgados elogios por parte de alguma comunicação social. E, mais uma vez, sem qualquer declaração prévia de interesses, depois de ter salvo da mediocridade os resultados dos JO de Tóquio (2021) com a cantilena d’ “os melhores resultados de sempre”, sedada pelo velhinho “o que nós queremos é futebol”, a comunicação social, na era da pós verdade que se vive, voltou a assumir a figura do “deus ex machina” a fim de salvar o herói enleado no emaranhado de paradoxos e contradições de um documento com pouca ou nenhuma utilidade, cuja letra e espírito extravasam as competências que decorrem da Lei portuguesa e da Carta Olímpica.

E, sem nunca se preocupar com o contraditório, a comunicação social tratou de avisar os partidos que não podiam deixar de ter em conta as recomendações do documento uma vez que, se o fizessem, cometiam, por desobediência, um “crime de lesa-pátria”. Simultaneamente, numa pedagogia de intimidação, a dita antecipou um aviso aos membros do futuro Governo, ― tenham muito cuidado porque vão estar sob “escrutínio apertado”.

Atualmente o desporto português encontra-se num círculo vicioso. Se, por um lado, devido à inexistência de uma considerável prática desportiva de base, o alto rendimento, através do efeito de volume, não é alimentado, por outro lado, como o alto rendimento não é alimentado, a prática desportiva de base, em consequência da inexistência do efeito de ídolo, acaba por ser prejudicada.

As políticas públicas, para romperem com este círculo vicioso, optaram pela contratação de atletas estrangeiros através de naturalizações “just in time”, para integrarem as seleções nacionais, solução que, para além de envergonhar o País, está a destruir o desporto nacional que só ainda não entrou em colapso devido ao empenho das famílias e das Câmaras Municipais que, em média, afetam 3,3% dos seus orçamentos às atividades físicas e desportivas. No ano de 2021 o montante cifrou-se em 323,3 milhões de euros (INE, 2022).

Num país em que: (1.º) 19,3% das crianças vive abaixo do limiar de pobreza; (2.º) 78% dos cidadãos diz raramente ou nunca praticar qualquer atividade física ou desportiva; (3.º) 88% (mais de 580 mil) dos jovens desportistas federados são, todos os anos, descartados da prática desportiva ao atingirem os 18 anos de idade; (4.º) Na relação custo benefício as participações nos JO representam uma superior mediocridade desportiva,

As recomendações do presidente do COP, pela sua inoportunidade e inutilidade, fazem lembrar a Síndrome do Titanic, quer dizer, um triste final de festa, tal qual a cena do maestro que insistia em manter a orquestra a tocar enquanto o maior e mais seguro navio do mundo ia ao fundo.

O espírito do Ludus pro Patria que animou o Movimento Desportivo Voluntário e o Movimento do Desporto para Todos dos anos setenta e oitenta do século passado, que fundamentaram as políticas públicas da base ao vértice da pirâmide de desenvolvimento em benefício da qualidade de vida dos portugueses, está hoje reduzido a um pastelão burocrático que, desgraçadamente, acompanhado de outras inutilidades e incoerências, acabou vertido no inútil programa do XXIV Governo.

Um Programa de Governo que, condicionado por uma preparação olímpica que incapaz de produzir resultados, insiste na irracionalidade de construir o desenvolvimento do desporto a partir do telhado do edifício desportivo.

E ao cabo de mais de vinte anos de um irracional programa de preparação olímpica que comprometeu o desenvolvimento do desporto nacional, Portugal apresenta um nível desportivo de 39,51%, o antepenúltimo do ranking dos países da UE.

O Governo deve ser capaz de ultrapassar a Síndrome do Titanic que tomou conta do desporto nacional. Para o efeito está obrigado a voltar a assumir a liderança político-estratégica dos destinos do desporto nacional, da prática de base ao alto rendimento, com políticas públicas sérias que, para além das condecorações, dos ridículos “honoris causa” e da cantilena dos “melhores resultados de sempre”, o ponham ao serviço da paz, da erradicação da pobreza, do reforço da educação, da promoção da saúde, da inclusão social, do cultivo da tolerância bem como da felicidade e da autoestima dos portugueses.