Uma vez a minha amiga Helena Vilaça explicou-me que nas cidades modernas precisamos de fugir uns dos outros porque vivemos amontoados. Como socióloga que é, a Helena constatava que essa é uma das ironias de morarmos tão perto uns dos outros, a de procurarmos distâncias tão toscas como a de não conhecermos os vizinhos que, se for preciso, dormem a metros de nós, separados por uma parede apenas. Como cantavam os Blur, modern life is rubbish.

O Senhor Eduardo, vizinho da Família Cavaco, morreu na semana passada. A Rute disse-me há dias, ainda meio em estado de choque. O Senhor Eduardo vivia no apartamento por cima de nós. Dormíamos, portanto, provavelmente separados por uns poucos metros apenas. E isto há 17 anos. Portanto, há quase duas décadas que nos acompanhávamos à distância no disparate que a vida moderna pode ser, como sabia a banda do Damon Albarn.

Quando uma notícia destas chega assim de chofre, podemos lamentar o tanto que ficámos por conhecer do Senhor Eduardo. E lamentamos. Mas a verdade também é que, no que nos conhecemos, não tivemos nenhuma razão de queixa. E, em jeito de homenagem fúnebre, quero assinalar apenas três bondades do Senhor Eduardo connosco.

O Senhor Eduardo tornou-se nosso vizinho em 2007 quando a Família Cavaco tinha uma menina de quase 3 anos e uma bebé de pouco mais de 3 meses. O Senhor Eduardo foi nosso vizinho com mais um bebé a juntar-se, menos de um ano depois, e com outro ainda a chegar menos de 3 anos depois. Com toda esta agitação infantil, sabem quantas vezes o Senhor Eduardo se queixou do barulho que certamente fazíamos? Zero. E, pelo que sei, não tinha problemas de audição.

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Quase sempre o Senhor Eduardo representou a Família Cavaco nas reuniões de condóminos. Não tenho orgulho em confessar a nossa ausência destes eventos e nunca o Senhor Eduardo nos censurou por ela — e moral não teríamos para levá-lo a mal se o fizesse. Uma disponibilidade destas significa que o nosso vizinho nos representou ao longo destes anos todos sem nada cobrar em troca.

Há uns meses o Senhor Eduardo facilitou o aluguer de um pequeno apartamento do nosso prédio a uma amiga nossa. A minha mulher, a Rute, confiou nele para que tudo se tratasse da maneira mais certa e breve. Uma vez mais, o Senhor Eduardo foi a quem recorremos para que, neste prédio de Oeiras, vivesse feliz a Famíia Cavaco e vivesse feliz também a nossa amiga. O Senhor Eduardo, já experiente em ser um bom vizinho para nós, foi um bom vizinho para a nossa amiga.

Podia escrever outras aventuras. Nas obras que empreendeu no seu apartamento, os trabalhadores contratados acabaram a fazer um buraco entre a casa-de-banho do Senhor Eduardo e a nossa. Um buraco mesmo: a meio do dia caiu uma parte do nosso tecto à custa do descuido daquela equipa. Deu problema entre nós e ele? De modo algum. Assumiu a sua responsabilidade e, tal como já tinha feito antes com problemas de humidade vindos do seu apartamento, a nossa convivência decorreu pacífica.

Claro que agora que soubemos que morreu, custa-nos não termos feito mais por ele. Volta e meia a Rute oferecia-lhe dos bolos que cozinhava e estávamos, por exemplo, a par da cirurgia às cataratas que tinha acabado de fazer. Dávamos pelos seus espirros mais sonoros e também notávamos quando deixava cair uma coisa mais pesada ao chão. Mas, caramba, tudo isto nos sabe escasso ao ouvirmos que na quinta-feira, ao estacionar o carro, caiu para não mais se levantar.

A Bíblia fala da importância de ser um bom vizinho. Num tempo e num espaço em que, quando estamos perto, procuramos estar longe, quero honrar o Senhor Eduardo como um exemplo do nosso próximo — a confusão da Família Cavaco nunca suscitou nada nele além da generosidade. É improvável que venhamos a ter um vizinho tão bom como ele.