Há uns dias tive a felicidade de receber um telefonema, no meu telemóvel pessoal, de uma Senhora Enfermeira que me disse ser a minha Enfermeira de Família e me comunicou que eu já teria Médico de Família, substituindo o meu anterior médico que se tinha reformado. Na verdade, os meus dois últimos médicos de família reformaram-se, o que é uma tendência no SNS. Por sorte, estou inscrito com a minha família numa Unidade de Saúde Familiar (USF), em Lisboa. Por ainda mais sorte, temos Médico e Enfermeira de Família. Como nunca me canso de dizer e escrever, nem tudo é mau no SNS. Longe disso.
É sobre o que está bem que temos de construir e melhorar. O telefonema da Senhora Enfermeira foi de extrema utilidade, para lá das informações que já mencionei, porque tive oportunidade de receber conselhos sobre o cumprimento do meu programa de vacinação, onde a vacina antitetânica poderá estar em falta, e fui instado a procurar a USF para que o meu estado de saúde fosse acompanhado e não apenas por doença. Fiquei extremamente agradado com o contacto e a forma como decorreu. Na sequência do telefonema anterior recebi o seguinte email:
“Boa tarde Sr.º Fernando Costa,
No seguimento do meu telefonema, fica com o meu email para depois me informar se tem a vacina do Td atualizada, se for o caso , peço para me fazer chegar comprovativo para fazer a devida atualização no sistema. Se não tiver a vacina atualizada pode sempre agendar comigo vacinação.
No sistema só existe 1 registo da vacina Td a 26/03/2009.
Obrigado.
Atenciosamente,”
Isto porque eu mencionei que talvez tivesse sido já vacinado no IPO. Confessei o meu desleixo…”não me lembrava”. Resolvi responder da seguinte forma:
“Senhora Enfermeira …
Muito Obrigado pelo seu contacto.
Sff relembre-me o nome do Colega que ficou como sendo o meu médico de família. Peço o favor de que lhe transmita os meus cumprimentos pessoais. Se for necessário eu poderei enviar por este email as minhas análises mais recentes. O mesmo Colega fica como médico do meu agregado familiar? A minha Mulher, … e os meus filhos, …, estavam na lista do … e terão transitado para a lista do …. Quanto à vacina, vou ver no serviço de saúde ocupacional do IPO de Lisboa.
Cumprimentos”
O que deu azo a esta resposta:
“Boa tarde Sr.º Fernando Costa,
Perante o exposto, vou procurar esclarecer as suas dúvidas. Eu sou a Enfermeira …, a vossa Enfermeira de Família (e de todo o agregado familiar, esposa e filhos) e tem também Médico de Família, o Doutor … Este email, é o meu email profissional, que diz respeito a mim, para facilitar os meus utentes no que diz respeito assuntos de enfermagem. Todos os assuntos administrativos e médicos são tratados pelos profissionais respetivos. Informo-o que não dou recados ao médico de família nem a outros profissionais, nem recebo análises/exames para mostrar ao médico de família. Atuo somente na minha área de competência.
Deixo os contactos gerais da unidade de saúde…
Obrigado pela vossa compreensão.
Atenciosamente,”
Devo continuar a louvar o cuidado com que a Senhora Enfermeira me respondeu imediatamente. É uma mudança que mostra um bom aproveitamento da velocidade das tecnologias para a comunicação com os utentes. É certo que poderia ter havido alguma preocupação maior na redação. Percebe-se que ainda há aperfeiçoamentos a fazer nos modelos de resposta a um cliente, um utente eventualmente com capacidade de escolha. É claro que não há, por enquanto, a preocupação de demonstrar empatia ou em querer fixar o interlocutor a quem devia ter dado a sensação de ser único e merecedor de atenção diferenciada e exclusiva. Ainda se lê uma filosofia de massificação na prestação de cuidados de saúde, ao arrepio das doutrinas mais modernas e das melhores práticas. Mas o ponto mais importante não é esse.
O que me aflige, sem esquecer as boas intenções da Senhora Enfermeira, é a silagem profissional a que se remete. Teme ser canal de comunicação privilegiado entre o utente e o médico, em vez de reivindicar essa prerrogativa. Não demonstra que o conhecimento das análises também deveria ser do seu interesse, até porque eu não lhe tinha pedido que as fosse mostrar a alguém, tão somente julguei que poderia ter interesse em vê-las e inseri-las no meu processo clínico. Assume que eu, o Fernando Costa, deveria conhecer as suas competências que não me descreveu. Trata das competências como se fossem território, em vez de responsabilidades. Desperdiça uma oportunidade de se mostrar como indispensável. Não percebe que há uma mais valia intrínseca e diferenciadora entre comunicar com a “minha Enfermeira de Família” ou o secretariado. Enfim, revela uma competição com o médico e deixa subjacente a ideia de que não há uma equipa única, cooperante e supletiva. No fundo, a dúvida que me deixou é simples. Para que nos serve ter Enfermeira de Família? Percebo que não seja para levar “recados”, tarefa que a poderá reduzir quando se olhar ao espelho, mas fica-lhe o quê?
Há um enorme trabalho a resolver na definição do que deve ser a atribuição de papéis, na governação clínica dos cuidados de saúde primários e nos objetivos que se pretendem atingir com as USF, de forma a que a majoração salarial dos seus profissionais seja eficiente. Comecemos pela palavra que as define, Unidades. Devem responder como Unidade e não como soma de partes que não dão “recados” às outras.
Aqui está um aspeto de intervenção imediata no modus operandi dos cuidados primários que pode levar à diminuição do recurso a serviços de urgência, à melhoria do acompanhamento holístico da Saúde dos cidadãos e à personalização – tantas vezes confundida com humanização – dos cuidados. Pelo que percebi, não sendo para ter as vacinas em dia, resta-me ligar para a linha geral ou, fora das horas de expediente, aguardar por que a linha Saúde 24 me atenda. Se me fartar de ouvir o entretenimento da espera, sempre posso ir à Urgência do Hospital mais próximo. Afinal não. A do mais próximo estará fechada porque é fim de semana ou é de noite…