Quando o passado deixa de iluminar o futuro a mente dos homens deambula pela escuridão” (Alexis de Tocqueville, pensador francês, 1905-1859)

Num tempo de engano universal, dizer-se a verdade, é um ato revolucionário” (George Orwell, escritor britânico, 1903-1950)

Introdução

O tempo é uma invenção do Homem. A realidade é uma invenção do tempo. A ação é um grito do tempo. O tempo existe desde antes até depois” (Aforismos populares mexicanos).

Ter pressa é universal porque toda a gente está em fuga de si própria” (Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, 1844-1900)

Torna-se perfeitamente supérfluo dizer que vivemos no meio de uma profunda crise. É completamente indesmentível que o setor da saúde é uma das mais dramáticas evidências dessa mesma crise. Torna-se patético assistir à constante negação da realidade por parte da hierarquia governativa. O ritmo vertiginoso a que tudo acontece não deixa o tempo necessário à imprescindível reflexão, simultaneamente audaz e ponderada, porque a todo o instante é necessário ir acorrer a dar explicações sobre algo supostamente inesperado que subitamente irrompeu e se tornou mediático. A agenda política está cada vez mais divorciada da realidade sentida pelos cidadãos. Soma-se, a tudo isso, os efeitos nefastos de três sucessivos acontecimentos devastadores para a sociedade: a crise económico-financeira, primeiro, a pandemia de COVID-19, depois, e, por fim, a guerra na Ucrânia, que, só por demagogia ou cegueira mental se poderia dizer que são, na sua totalidade, da integral responsabilidade de quem está presentemente investido nas funções governativas.

O que, sendo verdade, em nada retira pertinência ao que irei abordar, porque as suas causas remontam há décadas, como tenho vindo a refletir e a escrever insistentemente, e, se sofreram inegáveis impactos negativos com os três acontecimentos referidos, acabariam por inevitavelmente acontecer na mesma, como pretendo demonstrar de seguida. Apenas, porventura, mais tarde e sem um tão grande impacto, como o que atualmente nos esmaga a todos, embora, é um facto, de forma desigual.

O “Trim-Trim”

Apenas o tempo revela o homem justo; basta um dia para pôr a nu um pérfido” (Sófocles, dramaturgo grego, 497ac-405ac)

O tempo é o único capital das pessoas que têm como fortuna apenas a sua inteligência” (Honoré de Balzac, escritor francês, 1799-1850)

Se toda a vida humana, tal como a conhecemos, é feita de ciclos impostos pela natureza, há outros hábitos que são apenas uma criação conceptual do Homem, resultantes de convenções estabelecidas que não pretendem outra coisa que não regular mais adequadamente a sua atividade em sociedade, no sentido de evitar desnecessárias disrupções, embora o seu cumprimento, idealizado para certos contextos específicos, sendo posteriormente generalizado acriticamente de forma automática, pode, eventualmente, tornar-se contraproducente, por não respeitar as idiossincrasias de outros atores circundantes, com distintas “rotinas”, quanto mais não seja, por não saber atender àquela norma que sabiamente diz, “não há (boa) regra, sem (uma boa) exceção”.

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Sempre tive por hábito, mesmo sem estar de serviço, deslocar-me ao hospital onde trabalho há mais de 40 anos, quando algum doente me induz particulares preocupações, sobretudo quando não está presente nenhum dos meus colaboradores do Serviço que dirijo, ou, mais comummente, para me inteirar “in loco” da situação clínica de algum conhecido, amigo ou familiar, o que sempre encarei com naturalidade, mesmo sem a isso ser obrigado, ou por tal ser adicionalmente remunerado. Apenas ciente que a ética me impõe aquilo que a lei jamais o conseguiria fazer, sobretudo porque sei da importância vital desse simples gesto para quem é, por ele, agradavelmente surpreendido. No intuito de evitar cruzar-me com outros visitantes, que têm, naturalmente, de obedecer a regras mais estritas, procuro sempre ir noutros horários, no intuito de não ser interpretado por aqueles como estando a exorbitar dos meus direitos, até porque vou sempre sem farda, o que faz amiúde ter de dizer quem sou, pois, muitos dos que trabalham noutros Serviços nem sequer me reconhecem, em especial, agora, com o uso da máscara facial a que somos obrigados, o que sempre faço com a maior naturalidade possível.

Das muitas vezes que o fiz, recordo-me de duas que me tocaram mais profundamente. Uma, a visita a um doente que sigo há alguns anos na consulta do Serviço que dirijo (tal como a esposa e o filho mais velho, este com uma transmissão vertical da infeção que afeta os seus progenitores). O pai deste jovem adulto é um guineense muçulmano, a esposa uma cabo-verdiana cristã, e, o filho, como o primeiro se lamentou recentemente, um não tão bom seguidor das leis do Profeta, como o mesmo gostaria. Era época natalícia e a sua situação clínica deteriorava-se diariamente, estando tudo em suspenso de um resultado histológico que viria a confirmar, volvidos alguns dias, tratar-se de uma forma agressiva e rara de uma doença linfoproliferativa maligna, comummente associada a estados de imunodeficiência e a outras coinfeções virais. Sem ter muito de concreto para lhe dar animo, perante tão angustiante espera, lembrei-me de lhe ir oferecer o meu mais recente livro num dia feriado, no qual escrevi uma sentida dedicatória, o que agradeceu como se fosse um verdadeiro talismã, e, em simultâneo, um passaporte para continuar a poder trabalhar e a ajudar a criar a família que tanto preza, exclamando que o iria ler todo de seguida. Terminou, enfatizando, comovido, ter imenso orgulho em ter um médico que é, também, um escritor. Na última consulta, realizada muito recentemente, já depois de ter efetuado todos os ciclos previstos de quimioterapia citostática e de ter recuperado de um autotransplante realizado a seguir, exibiu um rasgado sorriso, ao saber que estava com as análises controladas, a que acrescentou que tal seria devido à extrema dedicação dos seus médicos e à proteção eterna do Profeta em que acreditava incondicionalmente.

A outra, mais antiga, eu próprio já a ouvi contar em público ao próprio doente, que conheço há muitos anos, eram os nossos filhos muito pequenos e frequentavam o mesmo infantário, circunstância que propiciou termos ficado amigos desde essa altura. O Professor Eugénio Fonseca, figura pública muito conhecida, estava internado no Serviço de Cirurgia Geral do CHS, em convalescença de um pós-operatório muito complicado a um tumor maligno do colon. Haviam passadas algumas semanas, e debatia-se com uma exasperante dificuldade em cicatrizar um orifício de deiscência da sutura, o que estava a vivenciar com um misto de esperança, embora com períodos de natural desalento, ou, mesmo, de desamparo por parte do Deus em que crê, tal como me confessou depois. Era também época natalícia e a minha mãe tinha acabado de fazer o meu doce preferido dessas festividades: rabanadas de vinho. Decidi, antes do almoço, onde reuni toda a família mais chegada na minha casa, levar-lhe uma, que fiz questão de lhe dar a comer à boca, exclamando que, nesse dia, era permito fazer esse pequeno “pecado”, porque o bem que lhe iria saber, compensaria certamente o risco. E assim foi. Já o ouvi, genuinamente comovido, afirmar que esse gesto, que afirma jamais ir esquecer, contribuiu decisivamente para acreditar que se iria curar, tal como, tudo indica, felizmente, veio mesmo a acontecer.

Idêntico comportamento tenho tido na Residência dos Professores em Setúbal, desde que lá tive a residir, durante alguns meses, o meu sogro, tal como o faço à minha mãe, aí residente desde há quase 5 anos. Como, de resto, já o fiz por várias vezes, quando ali tive internados vários doentes, alguns deles médicos, como o caso do colega Nogueira Seco, cujo o quarto que ocupou veio coincidentemente a ser depois ocupado pela minha mãe, após a sua transferência para outra instituição. Já me aconteceu, ao longo deste tempo, sobretudo à noite, quando não estavam presentes, nem médico, nem enfermeiro, ter de aconselhar as assistentes operacionais a acudirem a outros doentes, o que nunca me passou pela cabeça recusar, ou, sequer, esperar posteriores agradecimentos, por uma atitude que brota espontaneamente da postura ética que sempre tive perante a profissão que abracei.

Foi por tudo isso que não apreciei nada, quando, numa dessas visitas à minha mãe, num final de tarde, uma das professoras que fazia parte da direção daquela instituição me disse, à frente de terceiros, com um tom de voz eivado de indignação “que eu não era mais do que os outros e que não poderia ali entrar às horas que vinha fazendo”, a que um outro seu colega, com idênticas responsabilidades naquela mesma instituição, na tentativa de me demonstrar a justeza daquela afirmação, se tivesse limitado a apontar para uma sinalética, com letras pequenas, colocada à entrada de edifício, que dizia qual era o horário oficial das visitas.

Ao que respondi, ao segundo, que ninguém mo tinha dito tal aquando da ida da minha mãe para a instituição, e, que, se tal me tivesse sido comunicado nesse momento, jamais a mesma teria ali entrado, pois eu tinha dito atempadamente que, devido às condicionantes da minha atarefadíssima vida profissional, era para mim uma condição inegociável ir ali visitá-la sempre que tivesse para isso disponibilidade. Mas, em surdina, pensei para mim mesmo: estes senhores estão habituados a gerir o seu dia-a-dia em função do “trim-trim” da campainha que dá início ao princípio e ao fim das aulas. Como se tudo o resto da vida (deles, da minha, da nossa e a de toda a gente deste mundo) não conhecesse outra regra de marcação do tempo. Como se saber quando se começa e quando se acaba algo fosse o mais importante para tudo e para todos.

Mas o grande problema é que existem outros “trim-trins” na sociedade, e, também, e, cada vez mais, no campo da Saúde. É o caso, só para dar dois exemplos, primeiro, da listagem de marcação das consultas nos Cuidados de Saúde Primários, onde é perfeitamente inconcebível a cadência exigida e a esmagadora carga burocrática que, a par da inoperabilidade dos sistemas de registo informático, consomem grande parte do escasso tempo disponível, o que deixa o doente insatisfeito e o médico frustrado, corporizando a negação daquilo que deveria ser a verdadeira medicina clínica: ter tempo para ouvir o doente, para transmitir os ensinamentos fundamentais à vital educação para a saúde e para esclarecer as dúvidas que surgem. Este, é um tipo de medicina muito menos oneroso, mais eficaz e humanizado, do que aquele em que só há tempo para pedir exames auxiliares de diagnóstico e receitar medicamentos em função da sintomatologia evidenciada, mas sem olhar às suas verdadeiras causas, pois, a formulação assertiva de um prévio diagnóstico diferencial e o culto da verdadeira relação médico-doente, só se pode fazer de forma adequada com o que aqui defendo, e não com o espartilho de quaisquer “trim-trins”.

Ainda há dias, ouvi dizer a uma assistente operacional de uma unidade de doentes com evolução prolongada, que vinha acompanhar uma doente que sigo em consulta no CHS há mais de 20 anos, que foi em tempos vítima de uma secção pós-traumática da espinal medula ao nível lombar e que teve de se submeter, depois, à amputação das duas pernas logo abaixo da arcada crural, que eu falei muito mais com ela sobre os aspetos que ambos sabemos serem os mais importantes da sua limitadíssima vida relacional, do que o que foi feito numa consulta de psiquiatria a que a mesma tinha ido recentemente. Não comentei, mas apenas congeminei que existem muitas pessoas, incluindo médicos, para quem os “trim-trins” já são naturalmente aceites sem sombra de revolta, incomodidade ou com qualquer espírito crítico acerca da práxis profissional dos próprios…!!!

O outro exemplo, tem a ver com a maneira como o controlo biométrico da assiduidade foi implementado e está parametrizado. Nos Hospitais, se as horas a mais contabilizadas ao fim de um certo período de tempo não forem gozadas, são automaticamente apagadas do registo, sem serem pagas e como se nunca tivessem existido. Ao passo que, nos Cuidados de Saúde Primários, nem sequer temporariamente são contabilizadas, embora existam colegas que fazem muitas dezenas delas anualmente, mas a quem um pequeno atraso esporádico fica imediatamente registado. Contudo, o mais gravoso de tudo é tratar os médicos como se fosse apenas uns meros “mangas-de-alpaca”, dos quais só esperam que cumpram cegamente com os “trim-trins” que forem sendo implementados. Inadmissível. Inqualificável. Revelador do mais repugnante desprezo pelos médicos e pela verdadeira índole da sua missão.

As duas despedidas

Fisicamente habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória” (José Saramago, escritor português, 1922-2010)

O humanismo é a última resistência de que dispomos” (Edward Said, pensador e professor universitário palestiniano, 1935-2003)

Estou quase com 65 anos de vida e já completei mais de 40 anos de serviço. Tenho devotado uma dedicação incondicional em todas as funções que tenho exercício, embora já tenha recusado muitas outras, pelo que considero que saldarei proximamente a minha dívida para com a sociedade. Como digo muitas vezes, até aos 60 anos estive no SNS e no SDI do CHS por devoção, até aos 65 anos, estarei por missão, mas, depois disso, só por obrigação. A realidade que tenho vindo a constatar faz-me intuitivamente ter esta postura, pois não me poderia sentir mais frustrado com o desenrolar dos acontecimentos. Vi sair os primeiros jovens especialistas que no Serviço se formaram. Vejo degradarem-se progressivamente as condições de trabalho. Aquilo que coloco nos sucessivos Planos de Ação, que têm sido aprovados pela hierarquia institucional, jamais passam, na sua maioria, do papel. A burocracia e a inoperabilidade das ferramentas informáticas disponibilizadas, tal como já referi, colocam sistemáticos entraves ao regular desenvolvimento das atividades, quer clínicas, quer de gestão, fazendo-nos gastar o precioso tempo com tarefas supérfluas e não com o que seria mais importante para os doentes e para quem os trata.

Por tal, e porque pretendo ainda dedicar-me a outros projetos na minha vida profissional, pessoal e familiar, onde destaco a vontade de escrever alguns livros que vou acumulando na minha cabeça sem os poder passar ao papel, porque outras tarefas supostamente mais “urgentes” se vão incessantemente sobrepondo, aprofundar alguma investigação em aspetos da História de Medicina que me interpelam desde há muito e ainda não devidamente explorados por outrem, ousar pretender erigir um Museu a eles alusivo, exercer a minha atividade clínica privada numa pequena clínica da cidade sem ter de ser ao final de um dia de trabalho extenuante, ter mais tempo para dormir, para descansar, para desfrutar da companhia dos amigos, para viajar, para ler, para ir mais vezes ao cinema, ao teatro, a concertos e a exposições, para retomar a prática de algum desporto que não o de estar amarrado horas a fio a trabalhar à secretária um dia atrás de outro, tal como acompanhar mais de perto o crescimento dos meus netos e a vida dos meus filhos, que já estiveram ambos a viver no estrangeiro, é algo que sinto que, ou o faço agora e na companhia da minha esposa, também médica e nas mesmas circunstâncias do que eu, ou isso jamais se tonará possível.

Daí interrogar-me, cada vez mais vezes, será que ainda haverá quem tenha a coragem de condenar, por analogia, um comandante de um navio que, após ter salvado todos os membros da sua embarcação e a respetiva carga que lhe foi possível, no último momento, não o possa fazer à sua própria pessoa também, pergunto? É por isso que muitas vezes acrescento, com um sentimento misto de perplexidade e de revolta: o suor deixo todos os dias no meu local de trabalho; o sangue, até já deixei, pois, numa certa madrugada em que chefiava o SUG no CHS, há cerca de 30 anos, eu e toda a equipa médica demos sangue para permitir que um doente fosse operado na manhã seguinte e se salvasse, como veio, de facto, a acontecer. Mas os meus ossos eu vou deixá-los onde muito bem me apetecer… Será isto fruto de um condenável egoísmo, ou, antes, algo que deve ser entendido como perfeitamente natural pelos outros, pergunto de novo?

A outra despedida para a qual me tenho vindo preparar, é para a morte da minha mãe. Tenho lido, refletido e escrito muito acerca da mesma, muitas vezes ao lado dela na residência onde se encontra, designadamente quando preparei os textos, respetivamente, para a apresentação e o posfácio dos livros dos meus colegas e amigos Paulino Pereira (um romance histórico) e Palma Rodrigues (sobre a História do Sanatório do Outão), tal como dos artigos que irei remeter para uma publicação no estrangeiro (um sobre ética e o outro acerca da problemática da tuberculose no romantismo), a que acrescentaria a preparação de duas comunicações (a primeira, na abertura das Jornadas a que irei presidir em breve, e, a outra, daqui a cerca de três meses, no âmbito das atividades da FSNS- Fundação para o Serviço Nacional de Saúde, tal como já o fiz anteriormente por duas vezes). Doloroso sentimento que procurei interiorizar quando caminhei sozinho nas margens do lago Alqueva, em Mourão, depois de jantar e sob o céu estrelado, nos finais de janeiro do corrente ano, chorando e falando comigo mesmo, como se ela ali estivesse presente, após quase me ter morrido nos braços na véspera do Natal do ano passado.

O Cerne da questão

Os teus atos e não os teus conhecimentos é que determinam o teu valor” (Johann Fichte, filósofo germânico, 1762-1814)

As causas não determinam o carácter da pessoa, mas apenas a manifestação desse carácter, ou seja, as ações” (Arthur Schopenhauer, filósofo germânico, 1788-186)

Sentir pena dos culpados é trair os inocentes” (Ayn Rand, escritora e pensadora russa (1905-1982)

Cada vez sinto mais que falar de bons princípios, como o fiz numa comunicação num Congresso Internacional sobre Humanismo no exercício da Medicina, realizado no Porto em maio de 2022, para uma plateia maioritariamente composta por interessados não médicos e sem vestígio de políticos ou de gestores a assistirem, será deslocar o objeto da prática do que se está a falar, para a conceção intelectual de um sistema cada vez mais distante do verdadeiro foco: o binómio Doente-Médico. Foi isso que transmiti, na mesma cidade, em outubro seguinte, numa comunicação realizada no Congresso Nacional dos Estudantes de Medicina, no intuito de fazer alertar as novas gerações de médicos para a importância do facto de a prática da Medicina não se dever “apenas” fazer com recurso à tecnologia, tal como o vinho não se faz sem uvas. Boas e bem tratadas! Porque as vides são vida também. E carentes de muitos e bons cuidados. Tal como as pessoas.

Fica bem falar em humanização, em qualidade de vida, na avaliação da satisfação (dos “utentes” como dizem, porque dos profissionais, nem pensar…!!!), da prática de uma Medicina individualizada, na promoção da Medicina Narrativa, tal como da dieta mediterrânea, da prática desportiva, do combate ao “stress”, ao “burnout” e à violência no local de trabalho, mas, a realidade a que se assiste diariamente, revela-nos que tal são quase sempre ideias vãs de conteúdo e desligadas dos contextos efetivos onde, doentes, médicos e restantes profissionais de saúde se movem todos os dias.

O que se passou com a Pandemia foi o exemplo acabado disso. Não fora a capacidade de entrega incondicional e sem limites de quem tinha a responsabilidade de acolher e tratar os doentes, tal como da implementação dos respetivos planos institucionais, sem esperar pelas diretivas das instâncias superiores, e, aquilo que foi uma quase catástrofe, tal como relatei no meu mais recente livro, Reflexões em tempos de pandemia: histórias de vida, de prazer, de sofrimento e de morte, teria tido um impacto ainda muitíssimo mais gravoso para toda a sociedade.

Conclusões

O dinheiro tem, muitas vezes, um preço demasiado alto” (Ralph Waldo Emerson, filósofo norte-americano, 1803-1882)

Sente-se uma insatisfação, sobretudo dos jovens, perante um mundo que já não oferece nada, só vende” (José Saramago, escritor português, 1922-2010)

A zanga cresce porque as pessoas vivem pior e porque não têm esperança de que possam vir a viver melhor” (José Pacheco Pereira, cronista e comentador português, 1949 – )

Vivemos uma época em que faltam líderes políticos que consigam galvanizar os cidadãos para as grandes causas da Humanidade e que sejam vistos como o exemplo de coerência e de dedicação ao serviço público, que lhes permitam exercerem o Poder com critérios de oportunidade, de eficácia e de justiça reconhecidos pela sua maioria. Os exemplos de corrupção vão destruindo a vital imagem de entrega genuína de quem nos governa e, por consequência, fomentam o descrédito nas instituições e estimulam uma muito nefasta postura, onde o egoísmo campeia e a solidariedade se reduz à total insignificância, tal como afastam, cada vez mais, os cidadãos da fundamentai intervenção cívica empenhada.

Ter um emprego remunerado já não significa ter acesso a possuir uma vida pessoal e familiar dignas, facto que estimula a busca de outras formas de rendimento, muitas vezes através de um duplo, ou, mesmo, de um triplo emprego, como se passa no setor da saúde, quando não nas de índole meramente especulativa, o que mina completamente a necessária dedicação do profissional às boas causas, hipoteca a sua vida nos seus aspetos fundamentais acima referidos, adia projetos de aperfeiçoamento técnico-científico importantes, está na base de inúmeros pedidos de horário a tempo parcial, precipita a fuga do setor público para o privado e promove a emigração.

Não há que tentar ignorar que o denominado “tarefeirismo” se generalizou por conveniência de quem gere as instituições e de quem legisla, porque a verba é imputada à rúbrica dos bens transacionáveis e não à dos recursos humanos. As carreiras foram desvalorizadas, os concursos de progressão foram adiados “sine die” e, quando são realizados, foram transformados num ato meramente administrativo e divorciado do cerne daquilo que verdadeiramente os deveria definir: o empenho na melhoria da qualidade do exercício profissional, o aperfeiçoamento técnico-científico, a transmissão de saberes e experiência às novas gerações de médicos, bem como a capacidade em liderar grupos e gizar projetos que comportem efetivo valor acrescentado. Os ordenados estão congelados desde há mais de uma década e as condições de realização profissional estão cada vez mais distantes de se verem realizadas.

O que, no global, consubstanciam as razões profundas pelas quais sentimos que os pilares básicos da relação entre pessoas e as instituições, ou seja, a confiança e o respeito, foram quase definitivamente postos em causa e explica porque é que a pirâmide etária dos médicos do SNS tem uma percentagem absurda (25%) dos que têm 65 ou mais anos, e, por consequência, condiciona uma reduzidíssima capacidade de atração das novas gerações.

Por todas estas razões, como o expressei há menos de um ano, num artigo que publiquei e que dou frequentemente aos meus doentes na consulta para lerem, intitulado “SNS: Porque é que é fundamental entender os porquês da presente situação”, considero inevitável e imperioso que as estruturas representativas dos Médicos, dos outros estratos profissionais e das organizações de defesa dos doentes, forcem o Governo a negociar, reconhecendo que, teimar em salvar um sistema que já não é reformável, se se insistir nas mesmas receitas que já deram provas de não funcionarem, é persistir na ilusão e na mentira.

O que não é a mesma coisa que dizer que temos que prescindir de um Sistema de Saúde que propicie aos cidadãos cuidados de saúde acessíveis e de qualidade, sem discriminações de qualquer género, porque, como se vai vendo, para a grande generalidade das patologias graves, para as que implicam terapêuticas onerosas, ou para a emergência médica, a medicina privada ou a ligada aos seguros não é (e creio que nunca será) uma alternativa a considerar. Logo, nenhum governo de qualquer país democrático será eleito, assumindo explicitamente que só alguns é que irão ter direito ao que a decência civilizacional determina, que deverá (voltar a) ser, antes, para todos.

O sistema atual assemelha-se mais a um moribundo que toda a gente diz da boca para fora que ainda é salvável, e, que, perante a impotência prática de levar a cabo tal empresa com o êxito apregoado, acaba-se sempre assistindo a um assacar das culpas aos outros, em vez de se ter a coragem de enfrentar aquilo que eu estou a passar com o processo de saúde da minha mãe. A sua morte inevitável a um prazo muito curto, pois de nada me vale tentar iludir-me, ou colaborar na ilusão dos restantes familiares e amigos. Apenas me cabe agradecer a todos os que dela têm cuidado (médico, enfermeiros, auxiliares, fisioterapeuta, animadora cultural, cozinheiras, etc.) pelo seu profissionalismo e humanismo inexcedíveis, sem vislumbre de “trim-trim”, tal como gostaria de poder agradecer a quem tem a responsabilidade das políticas de saúde do meu País, idêntica dedicação, pragmatismo e respeito, porque só assim poderemos erigir um novo sistema sucedâneo do SNS, tenha ele a sigla que tiver, mas onde aquilo que aqui exponho com toda a frontalidade deixe de atormentar diariamente os doentes e possibilite que os médicos e os outros profissionais se sintam, finalmente, realizados.

É que a responsabilidade da situação, não sendo exclusivamente dos governantes do setor, é importante reconhecer, não deixa de ser proporcional à capacidade de intervenção de cada um. Logo, parafraseando o eterno George Orwell, “se é verdade que todos somos culpados, há uns que são mais do que os outros”. Tenham Vossa Excelências, por conseguinte, a palavra, e acabem com todos os “trim-trins” que estão a matar o exercício da Medicina e comecem por dar confiança a doentes e profissionais, respeitando-os, e, não, fazendo apenas de conta e da boca para fora.