Um homem morre como nasce, sem ilusões” (Voltaire, escritor e filósofo francês, 1694-1778)

Nem todos os futuros são para desejar, porque há muitos futuros para temer” (Padre António Vieira, prelado jesuíta, orador e escritor português, 1608-1697)

1 Introito: duas histórias

A voz da consciência e da honra é bem fraca quando as tripas gritam” (Denis Diderot, filósofo e escritor francês, 1713-1784)

Um escritor escreve o que tem dentro e vomita porque já não pode mais” (Isabel Allende, escritora chilena, 1942 – )

Sr. Primeiro Ministro António Costa

Vª Exª é conhecido como sendo um “otimista incorrigível”. Pelo Presidente da República, e, ao que tenho lido na imprensa, até por si mesmo. Reconheço-lhe inegáveis capacidades de oratória e constato ser aquilo que vulgarmente se denomina de um verdadeiro “animal político”. Com as inerentes qualidades, mas, também, com a correspondentes “manhas”. O meu propósito não é outro senão o de dar seguimento à última carta aberta ao Ministro da Saúde recentemente publicada e que tive a oportunidade de antes entregar ao próprio, a par de uma exposição ao Presidente do CA do CHS, do pdf de uma Conferência acerca da viabilidade do SNS, tal como de um convite para o mesmo ir assistir à apresentação do meu próximo livro, intitulado “Despedidas que jamais esquecerei”, que também lhe estendo à sua pessoa, ciente de que é necessário continuar a alertar suficientemente as consciências, quer de governantes, quer de cidadãos. Nessa carta disse, no seu título, estar a escrever como se de “um grito de alma se tratasse”.

É, assim, com o mesmo registo anímico que me dirijo ao Primeiro Ministro do meu País, na esperança de ser finalmente ouvido. É que nesse “encontro” com o meu colega Manuel Pizarro, ao darem-me apenas dois minutos para a minha alocução, terminei o curto improviso que fiz dizendo-lhe que ele estava afastado da prática médica há mais de duas décadas, e que, pelo que julgava saber dele e até pelo que tinha acabado de ouvir na intervenção com que abriu a reunião, na qual demostrou ser um profundo conhecedor das estatísticas, estava convicto que, se por acaso tivesse continuado a ser um clínico, como foi nas duas décadas anteriores, dirigir-se-ia agora ao eventual responsável governamental do setor nos exatos termos em que eu me estava a dirigir a ele. É que os números estão bem longe de traduzir o atual caos que se vive no setor da Saúde em Portugal, como tenho abundantemente escrito em diversas publicações, de cuja coleta farei um novo livro, a editar possivelmente para o final do próximo ano, intitulado “Ascensão e queda de um Sistema de Saúde”, onde esta carta irá também constar. Começo por lhe contar duas histórias verídicas, ambas passadas comigo e que ilustram bem a razão de ter escolhido o título que decidi dar a este texto.

A primeira passou-se há mais de duas décadas. A minha filha Joana iria estudar nos EUA por um ano letivo, razão pelo que lhe perguntei onde pretendia ir passar as duas semanas de férias no verão desse ano, como costumávamos fazer. Não esperou muito para me responder que pretendia ir para um país com uma cultura diversa da dos que já havíamos visitado antes, e, sobretudo, da que iria encontrar no país onde iria viver os próximos meses. A escolha recaiu, desse modo, na Tunísia, viagem que ainda hoje recordamos com saudade, pois permitiu-nos visitar a sua capital, Tunes, Cartago, o deserto, diversos vestígios da sua ocupação pelo império romano, tal como passar ainda a última semana a descansar na ilha de Djerba. Nesta última, foi possível visitar a sinagoga mais antiga do Continente Africano, erigida cerca de cinco séculos antes de Cristo, numa localidade onde ninguém distingue quem é judeu ou quem é árabe pelo seu aspeto e onde os dois povos, culturas e religiões, coabitam em paz há mais de dois milénios.

Escassos seis meses depois de lá termos estado, na sequência dos ataques às Torres Gémeas de Nova Iorque em 11 de setembro de 2001, aquele local de culto foi objeto de um bárbaro ataque à bomba que destruiu parte desse antiquíssimo monumento, tendo ainda vitimado mais de duas dezenas de pessoas, sobretudo turistas alemães. Infelizmente, voltou a sofrer mais dois atentados posteriormente, embora de menor impacto.

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Quando ocorreu o terrível ataque ao coração financeiro daquela que considero ser a cidade capital cultural do Mundo e que já visitei por diversas vezes, tinha a minha filha chegado ao estado de Michigan cerca de duas semanas antes. No dia seguinte comunicou-me, muito apreensiva, que as autoridades oficiais tinham disperso, por toda escola onde estava matriculada, cartazes do Tio Sam e que os seus colegas do sexo masculino do último ano tinham começado a pensar em vir proximamente alistar-se nas forças armadas, pois ninguém era capaz de antever o que se iria passar a seguir.

Como era de calcular, tive de organizar uma viagem para a ir visitar na companhia da Ana, a minha esposa e mãe da Joana, pois era necessário saber como a poderíamos evacuar de emergência se acaso fosse necessário, uma vez que, quando telefonei para o Consulado Português de Chicago, para o número que o Ministério dos Negócios Estrangeiros tinha fornecido a um amigo nosso que era diplomata da Comunidade Europeia, o Orlando Fachada, apenas consegui falar com uma funcionária que tinha sotaque brasileiro e que fazia a limpeza dos dois Consulados, de Portugal e do Brasil, embora me tivesse esclarecido que eu jamais conseguiria falar com o Cônsul Honorário Português, porque o mesmo já havia falecido há muito.

Quando me desloquei à casa da família onde a Joana tinha sido acolhida, no intuito de verificar as condições objetivas em que estava a viver, tive a oportunidade de ter longas e calorosas conversas com os Drooger, ao ponto de nos visitarmos ainda hoje mutuamente com uma certa regularidade, e de a Joana ter decidido ir aí celebrar a sua cerimónia de casamento numa praia do grande lago que dá o nome ao Estado desse imenso país de grandes contrastes. Expliquei-lhes que o pior ódio é o que nasce entre irmãos ou vizinhos. Pouco sabiam da história da Palestina e da tradição de convívio pacífico entre as três religiões do Livro na Andaluzia antes da reconquista cristã e da expulsão de árabes e dos judeus da Península Ibérica, bem como do facto de muitos dos crentes no Velho Testamento terem preferido refugiar-se nos países islâmicos, sobretudo no da Sublime Porta, onde reinava uma tolerância religiosa e étnica bem maior do que a que existia na Cristandade dessa época negra da História, onde imperava a Inquisição. A prenda de Natal que a Joana decidiu oferecer aos seus “Pais americanos”, como lhes passou a chamar, uma vez que a trataram sempre como uma verdadeira “filha”, foi um Corão traduzido para inglês, o que não lhes causou qualquer repulsa ou inspirou a mínima revolta, apesar de serem cristãos protestantes.

A segunda história ocorreu muito recentemente quando estava a passar uns dias de férias em Sines com a minha mulher e acompanhados por um casal de amigos, ele um coinense de gema, e, ela, a Elisabeth, uma cidadã norte-americana, mãe da filha mais velha do meu grande amigo Artur Esteves com quem convivemos muito há cerca de meio século. Num dos jantares que tivemos, este resolveu fazer um telefonema para o nosso amigo comum, o João, que mora em Israel há muitos anos e com quem eu não falava há cerca de quatro décadas. Como foi bom recordar velhas aventuras em comum, algumas delas nada apropriadas para aqui serem contadas. Trocámos contactos telefónicos e disse-lhe que estava a organizar um Congresso sobre Coina, agendado para abril do próximo ano, aldeia onde nasceu. Convidei-o logo para vir assistir ao mesmo, acrescentando que seria tratado com todas as Honrarias devidas. Disse-me que as três filhas e a esposa (todas israelitas e suponho que judias como a mãe, pessoa que conheci em circunstâncias bem inusitadas, numa festa organizada pela mãe do meu amigo, que consistiu numa matança de um porco, tal era o empolgamento de voltar a ter o seu filho de volta e de surpresa, o qual não via há muitos anos, e, certamente também, por ser desconhecedora das tradições culinárias do povo judaico, de resto, muito idênticas às dos árabes, com exceção do consumo de vinho, que está vedado aos últimos, tal como do jejum anual que os mesmos fazem).

Mal imaginávamos, todos, que o João iria passar parte dessa madrugada num bunker, pois mora nos arrabaldes de Tel Aviv, uma vez que poucas horas depois de termos falado, o Hamas iniciou a invasão do território de Israel, tendo causado a horrenda mortandade que toda a imprensa noticiou na manhã do dia a seguir, no qual voltámos a falar de novo ao telemóvel, tendo-nos o nosso amigo esclarecido que a razão pela qual a sua família tinha vindo a Portugal, tinha sido para tratar da renovação do passaporte, dado que nunca tinham conseguido obter informações de qualquer responsável pelos serviços diplomáticos, mesmo apesar das múltiplas insistências ao longo de vários dias. O porteiro da embaixada portuguesa em Israel foi a única pessoa com quem tinham falado, que lhes respondeu sistematicamente para enviarem mail para tentarem resolver o problema em causa.

O livro que levei para ler nestes dias foi, por grande coincidência, o Diário de Viagem de Albert Einstein, onde existem muitas referências à sua passagem pela Palestina. Acerca do critério que presidiu à escolha deste, referi aos meus companheiros de viagem aquilo que muitas vezes repito: ninguém pode fazer juízos assertivos acerca dos eventos políticos que nos assolam diariamente, se não fizermos duas coisas: Viajar e conhecer a História.

Quando fiz uma viagem de duas semanas a Israel nos finais de 2019, em que visitei também a Jordânia e fiquei os últimos três dias a calcorrear todos os cantos possíveis da mítica cidade velha de Jerusalém, tal como a visitar os seus inúmeros monumentos e museus, disse ao Frei Miguel e aos companheiros de viagem que era muito fácil nós estarmos a discutir as razões de cada um dos contendores desta guerra fratricida que dura há décadas, confortavelmente sentados à volta de uma mesa de um restaurante ou de um hotel. Outra coisa bem diferente, seria estarmos lá a viver permanentemente e carregar todos os dramas que foram sendo acumulados ao longo da história daqueles dois mártires povos irmãos e vizinhos.

“Em Israel o povo judeu nunca poderá dormir com os dois olhos fechados, porque no dia em que isso acontecesse, deixaria imediatamente de existir”, disse inúmeras vezes nessas amenas cavaqueiras aos meus simpáticos convivas. O que é certamente causa de um enormíssimo stress vivencial propício a exageros e contrário à serenidade do dia-a-dia que ninguém deve prescindir. Pergunto-me como foi possível, pela primeira vez na história, que o que então disse ser impensável jamais acontecer, tivesse mesmo agora acontecido?

Como comentei depois de ter tido conhecimento destes terríveis acontecimentos, enquanto nenhuma das duas partes tiver a coragem e a clarividência de, perante uma agressão da outra, ficar quieto sem ripostar, como a Bíblia diz que Jesus Cristo terá feito, ao oferecer a face contrária a quem o tinha antes esbofeteado na outra, não haverá nunca paz, porque a uma agressão, se seguirá sempre uma atitude idêntica do oponente. Até quando e com que consequências?

Enquanto iniciativas como as da West-Eastern Divan Orquestra, protagonizadas por Daniel Barenboim (judeu argentino) e Edward Said, (cristão palestiniano) formada por jovens músicos de Israel, do Irão, do Egito, da Jordânia, da Palestina e da Síria), que ensaiam na Andaluzia e tocam por todo o mundo, não se estenderem a todos os domínios e para todo o sempre, jamais haverá Paz na terra de onde é originário Abrão, pai das três religiões do Livro.

2 O nosso País: a Saúde e o resto

Não há nada mais difícil do que demonstrar o óbvio” (Arthur Schopenhauer, filósofo germânico, 1788-1860)

Aos governos, como aos homens, chega tarde o uso da razão” (Voltaire, escritor e filósofo francês, 1694-1778)

A maioria das repartições oficiais onde os cidadãos podem tratar dos seus problemas de vida continuam inadmissivelmente encerradas, apesar das medidas implementadas pela COVID já terem terminado há muito para todos os setores privados, o que acarreta consequências muito nefastas para a grande maioria dos cidadãos e o demonstrei nas duas histórias com que decidi começar esta carta.

A título de exemplo, informo o Vª Exª que no final de janeiro do corrente ano o meu advogado, Dr. Jorge Mata, solicitou ao CHS (no meu caso) e ao ACES Arrábida (no caso da minha esposa) a elaboração de uma Nota Biográfica que só no final do mês seguinte ficaram prontas, pelo que apenas no início de março foi solicitada a Contagem de Tempo à CGA. A partir daí, como não conseguíssemos obter quaisquer informações desse organismo público, o nosso advogado decidiu passar a remeter mensalmente, por mail, um pedido de informações que sistematicamente é respondido de modo automático a informar, num texto já pré-concebido para o efeito, dizendo que a resposta será dada logo que possível. Ao mail remetido em setembro, contudo, a resposta foi diferente, pois esclarecia que a ordem pela qual irão responder é determinada pela ordem de entrada dos processos, a que o nosso advogado irá contra-argumentar esta semana que não pode ser, pois o Estado tem de cumprir com os prazos tal como o exige aos cidadãos, uma vez que isso é condição para se poder considerar que existe um verdadeiro Estado de Direito, dado que ninguém, nem nenhuma entidade, se pode considerar acima da Lei que rege o resto da Sociedade. Ou não será assim?

Como a espera estivesse a ser absolutamente inaceitável e eu estive em conflito com o CA do CHS desde junho, tal como adiante referirei, decidi não esperar mais e coloquei o processo na Segurança Social para oficializar o meu pedido de aposentação no início de agosto, estando a ser informado que este organismo liga semanalmente para a CGA a perguntar pelos dados solicitados, no sentido de poderem completar o processo, mas nenhuma resposta concreta têm conseguido obter.

A minha esposa irá solicitar a sua aposentação, tal como eu o fiz, mesmo que também não seja informada antes da contagem de tempo, a 26 de outubro, pois termina o tempo a 25 de janeiro e, em termos burocráticos, tal só se pode fazer com o máximo de três meses de antecedência, pois faz nessa data 66 anos e completa a 1 de janeiro de 2024, 41 anos de serviço. O que, logicamente, se deveria poder deduzir ser da estrita obrigação daquela entidade responder dentro desse mesmo prazo! Ou não será assim?

Contudo, já decidimos que, se continuar a não haver resposta por parte da CGA, no dia 27 de outubro, o nosso advogado irá solicitar por escrito, que agendem uma receção presencial para que os processos possam finalmente avançar. Se, por absurdo, chegarmos ao final desse período de três meses sem que haja resolução do problema ou resposta da CGA, avançaremos para Tribunal, nacional, ou, mesmo, europeu. É que não há direito de demorar tanto tempo e não serem respeitados os prazos que a lei consigna. Ademais, a simples consulta, quer do portal da CGA, quer da Segurança Social, já fornece as informações relativas ao tempo de Serviço e à simulação das pensões a que os cidadãos têm direito, pelo que é pertinente perguntar porque é que temos que passar por este verdadeiro calvário, para obter aquilo a que a lei já nos dá direito? Será o Estado, em Portugal, realmente, uma Pessoa de Bem, pergunto? Ou será que esta demora é, antes, propositada, porque é supostamente aceite sem grande reclamação por parte dos interessados, sendo uma maneira de reterem mais uns quantos meses os médicos no seu posto de trabalho?

Passemos agora, sumariamente, a elencar um conjunto de outros problemas que tanto afligem os nossos concidadãos. As urgências fecham todos os dias por todo o País e já de modo nem sempre controlado e em rede, e, mais recentemente, não apenas na Obstetrícia. Existem Hospitais sem Diretor Clínico em pleno exercício de funções, tal como têm existido períodos de meses em que, nalguns CDPs, não tem havido médico para assistir aos doentes com tuberculose. Há hospitais em que os médicos tarefeiros recebem um adicional por cada alta que dão aos doentes nos Serviços de Urgência, o que é um dos maiores atropelos à Ética e à Deontologia profissional que se pode imaginar, cláusula que já deveria ser imediatamente banida nos contratos que se celebram com as empresas de recursos humanos que fornecem médicos ao SNS, logo que foi publicitada.

A DGS não tem Diretor em plenas funções há meses e as coordenações de alguns dos seus Programas não estão consequentemente atuantes. Existe uma espera de mais de dois anos para a disponibilização de alguma da inovação terapêutica, como acontece com os antiretrovirais injetáveis e tal referi na Carta Aberta ao Ministro da Saúde. Os exames de imagiologia, no ambulatório de muitos dos hospitais, demoram meses a serem realizados e, não raramente, semanas, nos doentes que estão internados nas suas enfermarias. As negociações com os Sindicatos são autênticos diálogos de surdos. O anunciado estatuto da Dedicação Plena é um autêntico embuste ao qual muito poucos irão aderir, pois, a troco de uns “míseros tostões”, ficam completamente desprovidos da proteção que o ACT lhes poderia dar, podendo essa adesão ser encarada como uma verdadeira “venda da alma ao diabo”.

Nas Forças Armadas, a exiguidade do número de soldados é tal que algumas funções já estão a ser desempenhadas por quem tem uma graduação superior, o que só poderá semear o descontentamento e é revelador da reduzidíssima capacidade de atratividade de tudo o que são funções públicas, o que está a deixar todos os setores mais importantes sem possibilidade de poderem responder cabalmente (saúde, educação, justiça e defesa), pois, como já acontece naqueles dois primeiros setores, uma altíssima percentagem dos seus quadros, quer de médicos, quer de professores, tem mais de 60 anos e estão literalmente em estado de burnout. Admite-se, um pouco envergonhadamente a hipótese de podermos passar a ter, nas Forças Armadas, cidadãos estrangeiros, o que equivaleria, na minha opinião, a ter um exército de “mercenários”. Por este andar, talvez venhamos a ter, seguindo a mesma filosofia, Deputados, membros do Governo, Juízes ou, até, quem sabe, um Presidente da República, estrangeiros. Porque não?

Onde chegámos! Como é possível estar satisfeito com este desenrolar de acontecimentos e esperançado no futuro? Como compreender que, neste cenário, alguém de bom senso, continue a ser um “incorrigível otimista”? É que, como deixou dito Albert Camus, embora “a integridade não precisa de regras”, tal não obvia a que não seja exigível uma relação de transparência entre quem detém o poder político e os cidadãos, pois, como na Medicina, as falsas esperanças e as mentiras piedosas só semeiam uma nefasta descrença.

3 Concluindo

Já se disse tudo, mas como ninguém ouve é preciso dizer de novo” (André Gide, escritor francês e Prémio Nobel em 1947, 1969-1951)

As reuniões são indispensáveis quando não se quer decidir nada” (John Kenneth Galbraith, economista norte-americano, 1908-2006)

Estou demissionário das funções de Diretor de Serviço desde junho, porque fui proibido pelo Presidente do CA do CHS de fazer no Hospital uma conferência acerca da “Viabilidade do SNS”, que fiz primeiramente fora, na versão reduzida, a convite da FSNS, razão pelo que aceitei fazê-la recentemente, em alternativa, e também a convite, na NOVA SBE, pela amabilidade e solidariedade do Professor Pita Barros, devo frisar. Ao fim de 40 anos de dedicação absoluta ao SNS, jamais poderia aceitar tal desconsideração, como expliquei na Carta Aberta ao Ministro da Saúde que referi. Acabarei de passar os meus doentes a 25 de janeiro de 2024 a uma colega, Evelise Ramos, recentemente admitida ao quadro médico de especialistas do Serviço de Infeciologia. Nessa altura já terei 41 anos de Serviço e apenas me ficarão a faltar cerca de quatro meses para completar o tempo legalmente estabelecido para a aposentação. Contudo, considero que terei feito o que a minha consciência me impõe que fizesse, pelo que não pretendo ficar mais tempo num hospital e num Sistema de Saúde que não respeita os profissionais e no qual estes, legitimamente, perderam a confiança, valores imprescindíveis a qualquer organização que se preze.

O SNS necessita de uma refundação, como defendi nessa conferência, assente nos valores que foram sendo postos em causa, pelo menos, neste último quartel, por todos os governos e ministérios, onde se protegem pessoas como a que ofendeu de modo indecoroso a minha dignidade, tal como já havia feito antes à Ana. O concurso para a minha substituição como Diretor de Serviço, que abriu recentemente sem o meu conhecimento prévio, ficou deserto de concorrentes tendo sido indevidamente publicitado, não tinha nenhum médico da especialidade a integrar o seu Júri e este era composto em três dos cinco elementos (Incluindo os suplentes e o seu presidente), por não médicos. Para além disso, o CA do CHS nunca respondeu ao meu advogado no sentido de sermos informados como estava a decorrer o processo da minha substituição, apesar da nossa insistência ao longo de mais de três longos meses.

Sr. Dr. António Costa: Tal como aprendi com a minha avó Lucinda e sabiamente dizem os aforismos populares, “quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele”, e, “tão ladrão é o que rouba, como o que consente”. Tenha a humildade de falar a verdade ao Povo e faça o que se impõe, aprendendo com a postura dos médicos, pois estes nunca devem deixar de dizer qual o prognóstico da doença que afeta os seus doentes, embora sem lhes retirarem a derradeira centelha de esperança. E não é por isso que os doentes se suicidam ou maldizem quem os tratou ou tal lhes disse. Bem pelo contrário. Infelizmente, tudo se encaminha para que o poder político tente responsabilizar a classe médica pelo descalabro vigente no setor da Saúde, como que esquecendo que o que se conseguiu no combate à pandemia se deveu muito mais à entrega incondicional dos profissionais à causa, em particular no SNS, do que à estratégia dos governantes.

Dedicatórias: Ao meu neto Simão (e a todos os doentes que estão internados nos Serviços de Urgência deste País), pois esteve hoje a ser assistido num hospital após um acidente e teve que ser transferido para um outro, por falta de especialistas capazes para fazer face ao problema clínico que o afetou de modo imprevisto. Não fez ecografias, mas antes dois TACs, num curto espaço de tempo, porque no primeiro dos hospitais, tal como em quase todos os outros do SNS, o que inclui aquele em que ainda trabalho, não há médicos imagiologistas suficientes, o que impede que o exame que é requisitado seja o mais indicado e não o que é possível nas circunstâncias objetivas, o que impossibilita aquilo que muitas vezes é fundamental, como era o caso: a troca de impressões de forma personalizada com o clínico, para que a Medicina seja exercida da forma como se aprende na Faculdade e as normas da Ética o determinam.

Ao Pedro Gil, padrinho do meu neto (e a todos os familiares que acompanham os doentes que recorrem em catadupas às Urgências dos Hospitais do SNS), pelo modo solidário de incondicional disponibilidade com que acompanhou o processo de doença do seu afilhado durante os primeiros dois dias, uma vez que os pais se encontravam no estrangeiro.

A minha colega Débora Mendes, pediatra escalada no Serviço de Urgência do Hospital de Évora (e a todos os meus colegas que trabalham em condições de grande pressão psicológica em Serviços de Urgência apinhados de doentes e, quase sempre, sem as mínimas condições logísticas adequadas), pois foi de uma competência inexcedível e de um enorme humanismo no trato, como pude verificar quando aí me desloquei na tarde do acidente. Sei que teve de ir acompanhar a transferência de pelo menos dois doentes nesse dia, para Hospitais de Lisboa, o meu neto já de madrugada, e, penso, que o último deles, o que a obrigou a fazer, nas 24 horas de turno, mais de 500 Km de ambulância. Quando me despedi dela, antes do agravamento clínico do estado de saúde do Simão, disse-me espontaneamente que gostava de trabalhar naquele Hospital, porque se sentia respeitada.

Ao meu querido e saudoso amigo João, e a todos os cidadãos portugueses que, vivendo no País ou no estrangeiro, se confrontam com o inadmissível encerramento dos organismos públicos, situação da qual eu e a Ana estamos também a ser vítimas indevidas.

Por fim, e de novo, ao João (e a todos os cidadãos de Israel e da Palestina, bem como a todas as vítimas das guerras fratricidas deste Mundo insano, onde se inclui a família de refugiados ucranianos que acolhi durante o primeiro semestre de 2022 na minha casa), por ser sobre si que recaem as consequências do que os políticos e governos nefastamente fomentam, pois em vez de pensarem que o povo do vizinho tem as mesmas necessidades e os mesmos direitos que o próprio, só sabem semear o ódio, em vez de aceitarem com naturalidade as diferenças decorrentes da etnia, do credo religioso ou da opção política.

Como seria inspirador poder assistir daqui a pouco, no telejornal, aos repórteres presentes na Palestina a darem-nos nota de, quiçá muito surpreendidos, que os aviões de guerra israelitas estavam a despejar, não bombas, como seria expetável, mas antes flores, em cima das casas dos “irmãos” palestinianos, e não ao som de metralhadoras, mas antes ao da West Eastern Divan Orchestra. Seria como que a concretização da lenda Bíblica, ver o Povo Judeu abdicar do “direito” de resposta. Podia ser que esta Guerra acabasse aos abraços entre os “inimigos”, tal como Nelson Mandela sabiamente promoveu na África do Sul no que concerne às vítimas e aos algozes do apartheid, e não como um possível quase extermínio de um Povo pelo do seu vizinho. É que a História nos ensina que jamais um conflito bélico poderá matar todos os inimigos, mas apenas capaz de ampliar imenso um ódio sem fim dos sobreviventes e nos seus descendentes. Como alguém terá dito um dia “ninguém poderá ser alguém, sem visitar os locais do Holocausto nazi”, como já fiz e jamais esquecerei. Que a Palestina não seja um novo museu de visita alusivo a um outro Holocausto, são os meus votos.