1 Introdução

A história é o incalculável impacto das circunstâncias sobre as utopias e os sonhos” (Mariano Salas, diplomata venezuelano, 1901-1965)

De todas as doenças do espírito humano, a fúria de dominar é a mais terrível” (Voltaire, filósofo francês, 1694-1778)

Fiz recentemente uma conferência intitulada “Será o SNS viável?” para a qual fui convidado pela FSNS e que repeti, na versão integral, volvidos cerca de três meses, na NOVA-SBE, a convite do Prof. Pedro Pita Barros que havia partilhado comigo a primeira, em Setúbal, e em que o mesmo foi comentador e anfitrião, na segunda. Devo-lhe o mote para o título que escolhi para esta Carta Aberta, sendo de assinalar que fui proibido, pelo atual Presidente do CA do CHS, de a fazer antes no CHS, algo inédito para mim e que motivou o meu pedido de aceitação imediato da demissão do cargo de Diretor de Serviço, decisão que reiterei hoje em nova exposição, perante o absurdo e completo silêncio do CA a questões candentes que, quer eu, quer o meu advogado lhe levantámos, como forma de salvaguardar a minha dignidade, a única coisa que costumo dizer ser o “preço do meu caráter”, assumindo que toda a gente deve ter o seu. Destas duas iniciativas, o meu (nosso) Bastonário lhe deu imediato conhecimento.

Na referida conferência explicava, segundo a minha ótica, as razões profundas do estado calamitoso a que chegou o SNS, um sistema que todos dizem defender, mas que os governantes do setor, desde há pelo menos um quarto de século, têm sistematicamente conduzido à inviabilidade, não porque assumam explicitamente a vontade de o destruírem frontalmente, mas, antes, porque o foram sub-repticiamente asfixiando de modo progressivo, ao ponto de lhe terem retirado a viabilidade à conta de clamarem que o estavam “apenas” a expurgar das suas “gorduras nefastas e supérfluas”. Não irei aqui repetir coisas sobre as quais já tenho escrito muito e que serão objeto da publicação de um próximo livro, a que darei o provável título de “Ascensão e queda de um sistema de saúde”, a editar, talvez, no final do próximo ano, e no qual integrarei este texto.

Em setembro de 2022 publiquei a primeira Carta Aberta no jornal Público online, que dirigi a Vª Exª, e que foi dedicada a todos os infetados por VIH em Portugal, por causa do atraso na introdução dos medicamentos antiretrovirais injetáveis. Em novembro desse mesmo ano, recebi de si, com um caloroso abraço, na presença do Bastonário cessante e do que lhe iria suceder nesse cargo, a medalha de Mérito da Ordem dos Médicos no decurso do último Congresso Nacional, tendo sido a única vez que estivemos juntos. Altura nada propícia para falarmos dos problemas da saúde em Portugal, como qualquer um de nós imediatamente intuiu e ninguém o aprovaria. É no seguimento daquela, e dado o assunto não estar (ainda) resolvido, que volto a incomodá-lo, mesmo sabendo que a minha aposentação está aprazada para data não muito distante. Não só por mera questão de responsabilidade cívica interventiva, mas também pelo que a seguir lhe descreverei e que levanta questões da máxima atualidade, provocando interpelantes interrogações de índole ética, como terá a oportunidade de ver, às quais jamais me poderia furtar a expor-lhe, por puro imperativo de consciência.

2 Quando as almas gemem…

Descartes já o tinha percebido com uma admirável clareza: a liberdade da indiferença é o grau mais baixo da liberdade” (Gabriel Marcel, filósofo e compositor francês, 1889-1973)

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É mais fácil gozar com alguém, do que convencer essa mesma pessoa de que foi gozada” (Mark Twain, escritor norte-americano, 1835-1910)

Era, até há poucas semanas, médico da única doente em Portugal que estava medicada, desde há quase 5 anos, com antiretrovirais injetáveis, mas, muito recentemente, vi-me na contingência de solicitar a introdução de uma segunda nessa estratégia de tratamento, tendo visto deferido esse imperioso pedido de aprovação por parte do Infarmed em tempo record (assim fosse sempre!!!). A pergunta que começo desde já por lhe fazer é a do porquê desta demora na aprovação de uma medicação que é verdadeiramente inovadora e que pode, nalgumas circunstâncias, representar a melhor opção terapêutica, quando não a única. Outros países comunitários já a introduziram há mais de dois anos, a OMS considera-a, desde há cerca de um ano, uma opção extremamente válida, quer na terapêutica da infeção estabelecida, quer em PrEP (profilaxia pré-exposição).

Numa amostragem realizada por minha iniciativa numa ONG e em dois Hospitais (um deles o CHS), onde são tratados, no conjunto, milhares doentes com esta infeção, uma percentagem a rondar os 50% diz preferi-la, como alternativa a ter de ingerir com muita regularidade, anos a fio, uma terapêutica oral, tendo estes resultados sido transmitidos por mim ao Infarmed numa videoconferência realizada há meses, que visava apoiar precisamente este complexo e demorado processo decisório. Não sendo mais dispendiosa, sendo igualmente eficaz e bem tolerada, não se compreende, nem se pode aceitar, este enorme atraso, tal como disse num programa promovido pelo jornal Expresso já este ano em que fui convidado a participar.

Os dois casos são de índole muito diferente, embora ambos igualmente exemplificativos da premência do acesso a esta estratégia de tratamento. No primeiro, tratava-se de uma jovem com o diagnóstico recente de infeção por VIH-1 que engravidou, mas que não conseguia deglutir qualquer tipo de medicação desde criança. Esta história, muito mais complexa do que este simples resumo pode fazer supor, já foi antes contada em pormenor, pelo que terminá-la-ia por ora, acrescentando apenas que a doente e o filho se encontram bem de saúde ao fim de mais de 5 anos de tratamento da mãe, já que a criança jamais seroconverteu. Razão para se poder afirmar, com todo o propósito, que todo o enorme empenho e dispêndio de energia e de tempo gastos neste processo, foi coroado de êxito, ao contrário de todos os outros pedidos até aí formulados por outros colegas. Mais adiante, ainda farei mais uma outra breve referência ao mesmo.

O outro (na verdade, três, como a seguir tornarei mais claro) é o de uma jovem de 18 anos, portuguesa de nascimento e filha de um casal de cidadãos da mártir Nação Ucraniana, chegados a Portugal pouco tempo antes do parto. Como a mãe me contou no maior desespero, a filha não chorou quando nasceu e também não conseguia mamar, pelo que teve de ser reinternada poucos dias depois de ter saído da Maternidade do Hospital. Cresceu e desenvolveu o seu corpo, mas ficou indelevelmente limitada nas suas capacidades cognitivas, tendo um comportamento de tal forma desadequado, que a CPCJ a enviou para duas unidades específicas de internamento para recuperação de adolescentes difíceis, primeiro para uma no Montijo, e, posteriormente, para outra no Porto, de onde teve alta, no dia seguinte a ter atingido a maioridade. Foi para casa dos pais, tendo mantido o mesmo padrão de comportamento, só que, desta vez, também com práticas sexuais de risco, passando vários dias sem que os pais conseguissem saber do seu paradeiro.

Foi feito o diagnóstico de infeção por VIH-1, tendo sido posteriormente apurado que há pouco mais de um ano tinha resultado serológico negativo, razão pelo que foi referenciada à consulta externa do Serviço que dirijo. Como os meus colegas, os enfermeiros, a assistente social e a psicóloga se vissem em sérias dificuldades para lidar com a deficiente adesão da jovem à consulta e à medicação e a mãe tivesse vindo ao Hospital de Dia, em enorme estado de desespero, a solicitar ajuda para lidar com a filha, o assunto foi-me colocado nessa altura. Foi então que falei com os meus colaboradores e com a mãe da jovem, no intuito de me inteirar da complexa problemática envolvente.

Volvidos uns dias, a mãe conseguiu trazer a filha para que eu conversasse com ela, tal como lhe havia pedido da primeira vez, tendo intuído, de imediato, que jamais seria capaz de interiorizar com adequação o conteúdo do que falámos. Soube que tinha uma “amiga” com um historial muito idêntico ao seu, também com a mesma idade e, passados uns dias, verifiquei que ambas tinham uma página numa rede social virtual a partir da qual angariavam “clientes” e combinavam “encontros”. Solicitei-lhe que dissesse à sua “amiga” para vir também falar comigo.

Nas análises efetuadas na semana anterior, exibia uma CV (carga viral) para o VIH de pouco mais de 20 cópias (sendo esta negatividade, condição indispensável para poder iniciar, se acaso tivesse acesso nesse dia, à terapêutica antiretrovial injetável, já que tinha um anovulatório recentemente implantado por via subcutânea e válido por 3 anos. Esta duas estratégias permitiriam que não viesse a ter uma gravidez indesejada e indesejável, bem como que não infetasse terceiros). Estava ainda coinfetada com um outro microrganismo de transmissão sexual, tendo sido medicada em conformidade. Foi feito o reforço da necessidade imprescindível de tomar regularmente a medicação oral, de modo a voltar daí a 1 semana para repetir análises, no intuito de saber se já estaria com carga viral negativa, assim como se estava a aderir melhor à medicação. Expliquei à mãe e à doente que, acaso isso se verificasse, iria providenciar a possibilidade de aquela passar a ter acesso aos antiretrovirais injetáveis, uma vez que seria, de longe, a melhor estratégia para este caso (tal como para muitos outros, deverei acrescentar).

A doente não compareceu nesse dia, tendo a mãe vindo sozinha, dizendo que não sabia do seu paradeiro, razão pelo que fiz um relatório que foi remetido ao Delegado de Saúde e que transitou para o Tribunal, instância oficial que, até ao momento, não nos fez chegar qualquer tipo de decisão ou de pedido de informação. A colega da Psiquiatria tomou idêntica atitude, tendo o seu relatório seguido o mesmo destino. No que eu elaborei, lamentava a inexistência de uma lei para o internamento compulsivo por doença infectocontagiosa, mas que o mesmo tinha sido decretado no primeiro caso acima referido, dado que inicialmente,essa doente também tinha tido um comportamento de fuga e de recusa na toma da medicação prescrita, (agradecendo-nos hoje tal iniciativa). Enfatizei que ninguém tinha sido punido por isso, tal como tem acontecido noutras circunstâncias, mesmo sabendo-se que não existe unanimidade nesta prática, por decorrer sobretudo de uma extrapolada analogia com o que estava previsto na anterior lei de Saúde Mental. A colega de Psiquiatra era antes da opinião que, nesse contexto, a solução mais adequada seria a de recorrer à figura do “maior acompanhado”, prevista na nova Lei de Saúde Mental, recentemente entrada em vigor.

Volvidos alguns dias, a doente compareceu na Unidade de Ambulatório acompanhada pela sua “amiga”, a quem foi feita a colheita de sangue para análises, que vieram a revelar-se também positivos para VIH-1, mas esta última também não compareceu à consulta que tinha sido agendada para a semana seguinte. Quando veio, passadas duas semanas, foi-lhe explicado que teria de voltar no dia seguinte para tirar sangue para reconfirmação e caraterização da infeção. Foram desenvolvidos muitos contactos para saber onde poderia ir dormir nessa noite, pois era de tarde e os laboratórios já não recebiam qualquer amostra biológica, tendo-me parecido mais importante, nessas circunstâncias, providenciar que fosse observada por um ginecologista, tomando em consideração as suas queixas clínicas, tal como veio ainda a acontecer, tendo daí saído devidamente medicada. Porém, recusou as opções colocadas que se conseguiram arranjar para resolver as suas dificuldades de índole social, diligências que envolveram várias entidades extra-hospitalares com as quais falei pessoalmente ao telefone. Argumentou preferir ir ficar na casa de uma amiga que morava perto de Sintra, comprometendo-se a voltar no dia seguinte.

Fiquei a saber que era filha de um casal em que o pai tinha estado detido durante vários anos e que tinha mais 4 irmãos. Na infância, tinha sido adotada por um outro casal, conjuntamente com um dos seus irmãos, até ter sido colocada pela CPCJ nas mesmas instituições da outra sua “amiga” na sua adolescência, por razões idênticas e, tal como ela, tido alta da do Porto, aos 18 anos, havia escassos meses. A grande diferença, era que, ao contrário da sua “amiga”, nem os pais biológicos, nem os pais adotivos a queriam receber na sua casa. Contudo, a sua capacidade de entender a conversa era bem melhor e mais adequada do que a sua parceira de “infortúnios” e de “aventuras”.

No dia seguinte, fui instado a observar um jovem brasileiro que, sem ter sido referenciado por ninguém, decidiu recorrer ao Hospital de Dia do Serviço em verdadeiro estado de pânico, porque tinha acolhido aquelas duas jovens na sua casa, por já conhecer a primeira delas e na manhã desse mesmo dia tinha sido informado pelas mesmas que uma tinha teste positivo para VIH, e que a outra aguardava o resultado do teste serológico que efetuara havia pouco tempo, tendo havido contactos sexuais de risco nessa madrugada com ambas, razão pelo que fez colheita de sangue para análises e iniciou PEP (Profilaxia Pós Exposição). Os resultados dos testes, felizmente, revelaram-se negativos, quer no primeiro dia, quer ao final de 4 semanas. Quando o encontrei no final desse período, perguntei-lhe pela doente que tinha deixado de comparecer, apesar de contactada telefonicamente por diversas vezes, ao que o mesmo me retorquiu que ela lhe tinha afirmado, também ao telefone, ter afinal teste serológico negativo, ao que respondi, não ser de todo, verdade.

Voltando à segunda doente, soube pela Mãe que várias vezes a polícia a foi procurar na casa dos pais, mas nunca a conseguiu localizar. Na sua vinda seguinte ao Hospital de Dia, lá consegui que aceitasse voluntariamente ficar internada para fazer análises, tomar medicação sob vigilância da enfermagem, e, estando com a CV negativa, como veio felizmente a acontecer de facto, poder ser-lhe administrada a terapêutica injetável, o que coincidiu com o dia da chegada da mesma ao Hospital. Ainda assim, na véspera da alta, já se tinha querido evadir do quarto, tendo sido impedida dessa intenção, in extremis, pela intervenção de uma das enfermeiras ao telefone, que lhe perguntou se queria mesmo deixar todo o nosso investimento a perder.

Informei o Delegado de Saúde de todos estes factos, tendo depois feito constar que a doente sempre acabou por comparecer ao Hospital de Dia no dia aprazado para lhe ser administrada a segunda dose da terapêutica. Soube que vivia com um novo “namorado” que conhecera há “já” uma semana, mas que este não sabia da sua situação serológica, tal como ela desconhecia a dele, pelo que disse à doente para ambos virem na semana seguinte ao Hospital de Dia para uma nova consulta, tendo-lhe sido colhido sangue para novas análises. Quando questionada, informou-me que sabia que a sua “amiga” estava com um novo “namorado” no Porto, para onde tinha ido nesse fim-de-semana, mas que ainda não tinha voltado a ser consultada.

Realço que tudo isto se passou numa altura de aparente vazio legal, pois a anterior Lei de Saúde Mental já tinha sido revogada e a que iria entrar em vigor, não tinha sido ainda publicada. Termino, pois, esta parte, a colocar umas quantas questões, tal como o fiz no início: O que é que preside ao facto de este tipo de adolescentes ter alta “administrativa automática” logo após o dia em que atingem a maioridade legal, ficando imediatamente entregues a si próprios, sem que alguma autoridade oficial vá tentar saber depois como está a decorrer a sua inserção social e familiar, tal como acontece, e bem, aos casais que adotam crianças? Quantos casos não haverá assim por esse País fora? Se for aplicada, pelo Tribunal, a figura do “maior acompanhado”, quem será ele, no caso vertente? Serão os pais? A irmã? Com que “custo” para a sua vida futura?

3 Conclusões

Vivemos num mundo de mentiras sistemáticas” (José Saramago, escritor português, 1922-2010)

O futuro é a mentira com que nos justificam a brutalidade do presente” (Anthony Marra, escritor norte-americano, 1984 – )

Há uns anos, a propósito do primeiro caso, tal como de outros dois já contados noutros textos, onde se incluía o de um cidadão eslavo portador de tuberculose extensivamente resistente que se evadiu de uma prisão russa, que entrou depois no espaço comunitário através da Polónia e que veio para Setúbal, por razões que nunca consegui apurar, promovi uma reunião na sede da Ordem dos Médicos, com a participação do então Bastonário, deputados, especialistas de infeciologia e de pediatria, tal como de diversos juristas especializados em questões de Direito Médico, para discutir os fundamentos de uma eventual futura lei para o internamento compulsivo por doença infetocontagiosa, hipótese que, infelizmente, se gorou. É sabido, contudo, que uma proposta concreta está na gaveta do parlamento há muitos meses, porque finalmente algum responsável político, perante a eclosão de uma pandemia, achou que fazia realmente falta uma legislação específica, como existe em muitos países democráticos. O que não é o caso propriamente da infeção por VIH, na minha opinião, devo sublinhar. A não ser, porém, como se depreende do que já explanei, no caso das grávidas, ou quando existem défices cognitivos que tornam as pessoas inimputáveis, como no caso que relatei no capítulo anterior.

Na realidade, perante uma doença potencialmente fatal, com capacidade pandémica e/ou facilmente transmissível por via aérea ou por simples contato pessoa-a-pessoa, não é violentar alguém, mas antes, permitir que se trate e que impeça de ser causa de forte e evitável impacto negativo a outras pessoas, enquanto durar a sua infecciosidade, sobretudo quando não existem vacinas e/ou antimicrobianos eficazes disponíveis. No caso das grávidas, tratar-se-ia de assumir a defesa de quem não se pode defender, perante tal conflito de interesses e de direitos. É que quem diz querer prosseguir com a gravidez nessas circunstâncias, tem a obrigação ética de se deixar tratar, para impedir a transmissão de um determinado agente infecioso (Treponema, VIH, Toxoplasma, ou outro qualquer que seja causa de malformações congénitas e/ou provoque infeção crónica grave e limitativa do adequado desenvolvimento do feto, por vir a condicionar grandes limitações futuras na qualidade de vida de quem não pediu para vir ao Mundo, como o sábio provérbio popular tão bem ilustra).

Nessa reunião, o meu colega e amigo Lino Rosado, aquele que mais casos de SIDA pediátrica tratou em Portugal até hoje, quando o questionei, afirmou perentoriamente que, se tal tivesse sido implementado, muitos casos de transmissão vertical teriam sido evitados e os dramas humanos que vivencio com os infetados, hoje na terceira década da vida, sido obviada. A sua revolta pelo “mal” que herdaram, é uma coisa bem real e latente, embora lhes diga sempre que não devem culpabilizar liminarmente os seus progenitores, em especial as mães, até porque, no início dessa pandemia, nem diagnóstico, primeiramente, ou tratamento eficaz, havia durante os primeiros anos e até meio da década de 90 do século passado.

Esta temática foi objeto de reflexão aquando do Debate intitulado “Ética, Direito e Saúde Pública” que organizei e se realizou, pela primeira vez em setembro de 2022, no qual participaram dois deputados da AR, a par de ilustres juristas e médicos, tendo existido um segundo realizado já este ano e há escassos dias apenas e que abordaram estas temáticas. Debates para os quais Vª Exª foi convidado, mas que declinou estar presente. Os meus discursos serão publicados este ano no livro “Despedidas que jamais esquecerei” que lhe irei oportunamente oferecer.

Não queria deixar ainda de sumarizar, a terminar este “desabafo da alma”, para além das referências que já fiz, em especial ao facto de a aprovação da inovação terapêutica levar anos a ser concluída em Portugal, sendo das mais elevadas da Europa Comunitária, alguns outros exemplos bem ilustrativos em como o futuro do SNS está, infelizmente, por demais ameaçado de morte, embora o Ministério e o Governo continuem a negá-lo. Assim:

Existem hospitais sem Diretor Clínico e CDPs sem médico há meses (por exemplo, em Setúbal, no que concerne a este último). As negociações com os sindicatos continuam a ser um verdadeiro e opaco “diálogo de surdos” e isso só vai provocar mais abandonos do Sistema Público de saúde por parte dos mais novos e dos mais velhos, embora por motivos diferentes (os primeiros, por irem para o sistema privado ou para a emigração, e, os segundos, por optarem pela aposentação). O caos das urgências vai-se agravando, conforme se vê diariamente nas notícias e quem está por dentro da problemática o confirma plenamente. Dá-se cobertura institucional e hierárquica a graves atropelos da mais elementar ética médica (por exemplo, remunerar adicionalmente os médicos pelos doentes a quem dão alta, como no CHS), premiando-se o “tarefeirismo”, em vez da dedicação e da competência integradas numa carreira profissional com avaliação condigna interpares (o que não é, de todo, o SIADAP). Cria-se um fosso incomensurável na remuneração dos médicos no Sistema Público (os que “só” têm por missão a observação clínica dos doentes e não praticam qualquer técnica, que são remunerados de uma forma, fazendo supor que tal é uma missão sem grande relevância, enquanto os que têm produção adicional (técnicas, cirurgias ou consultas), auferem muitíssimo mais, o que irá desvirtuar ainda mais, de futuro, a escolha pela especialidade), onde irá campear a fuga da verdadeira Medicina Clínica (Medicina Geral e Familiar, Medicina Interna, Infeciologia, Oncologia, etc.). A criação generalizada de USFs, num período de acentuado constrangimento em meios financeiros e humanos, em que o desajustamento do parque tecnológico, ao nível hospitalar, atingiu os limites do absurdo, só irá transformar aquilo que até poderia ser uma boa ideia, num acentuar do antagonismo entre os cuidados hospitalares e primários de saúde, pois cada um dos lados vai atirar para cima do outro a culpa do previsível agravamento da situação. Não se privilegia a escolha livre do doente, uma vez que os exames auxiliares de diagnóstico, ao contrário dos medicamentos, continuam a não ter comparticipação no âmbito das consultas privadas, o que produz um gasto desproporcional aos que procuram ser consultados fora do espartano Serviço Público, que cada vez responde menos e pior, divido à patente exiguidade dos meios disponíveis (humanos, logísticos e organizacionais), ou, então, induz uma desmultiplicação desnecessária e artificial de “pseudo” consultas nos Centros de Saúde, onde os médicos de família são literalmente bombardeados pelos “seus” doentes com pedidos para que lhes sejam passadas as requisições do SNS, à revelia do normativo vigente. O que fazem, muitas vezes, por mera “pena” de quem os procura “só” para esse fim. A anunciada criação de um Processo Clínico único para cada doente, só será uma boa medida se o programa informático for fiável e intuitivo, o hardware e a rede digital adequadas, devendo ter na sua conceção, o contributo de médicos que exerçam clínica, em vez de terem como principal ou único objetivo, a contabilização aritmética de índices de produção administrativos, como acontece, por exemplo, com o SiVIDA e o SONHO, ou seja, pouco mais do que um mero repositório de textos, como o SClínico, que frequentemente nem sequer interligam entre si. Por último, dizer que ter-se criado um outro patamar de decisão hierárquica, a denominada Direção Executiva do SNS, ainda desprovida de adequado enquadramento funcional, por lhe faltar a necessária regulamentação que o suporte, mantendo em funcionamento outras estruturas intermédias, digo, as ARSs, é algo bem demonstrativo da grave falta de uma estratégia coerente para o setor, que culmina na situação em que se encontra a DGS, onde não existe liderança efetiva há quase um ano.

Bastante mais haveria para dizer, mas corria o risco de me repetir, pois muito já tenho dito noutros textos publicados que serão coletados para daí fazer o livro “Ascensão e queda de um sistema de saúde”. Até lá, irei ter a postura que sempre tive: ser fiel aos bons princípios da ética profissional, ser diligente e competente no tratamento dos meus doentes, exercer a minha cidadania interventiva de forma independente, fazendo uso da reflexão escrita, sempre que o desenrolar dos acontecimentos me instigar a tal, na senda do que deixou dito o escritor francês, André Gide, que escreveu “quando já não me indignar terei começado a envelhecer”.

Em suma, terá, afinal, o SNS (ainda) salvação? Responderei que bem gostaria, porque foi nele que cresci e me fiz “Médico”, ajudando diariamente a fazer o mesmo a vários internos e recém-especialistas. Assumido que o tempo jamais voltará para trás, tal poderia ser conseguido APENAS se o PODER POLÍTICO tivesse disso GENUÍNA VONTADE. Até porque, como expliquei na referida Conferência, o Sistema Privado, em Portugal, tal como presentemente existe, jamais será uma alternativa Universal, capaz de não deixar ninguém de fora. Esse desígnio APENAS poderia ser concretizado com uma SÉRIA vontade de induzir confiança na planificação, respeitando sempre os profissionais, dando-lhe condições efetivas e dignas do exercício profissional e remunerações que sejam desincentivadoras do multiemprego e do “tarefeirismo”, impedindo que cada doente e cada ato médico deixe de ser reduzido a um simples meio de sobrevivência do médico, quando não, apenas de enriquecimento e de promoção pessoal do mesmo, postura que deveria merecer o mais veemente repúdio de todos, em vez de ser antes motivo de satisfação em permitir a sua realização profissional por meio da vital ajuda a minorar o sofrimento e a dependência ao nosso semelhante, tal como na fundamental missão de formação das novas gerações.

Algo que, como se vai constatando, está cada vez mais longe de acontecer, bastando para isso, por exemplo, evocar a infernal demora que os processos de aposentação estão presentemente a levar para serem concluídos para os médicos, onde a Segurança Social e a CGA não partilham os seus dados de modo célere, como se fossem entidades estranhas, as informações que constam nos seus portais de quase nada valem, para além de não responderem adequada e concretamente aos pedidos de informação, mesmo quando são formulados por advogados, tal como não permitem o atendimento presencial, contrariando o que o próprio Estado exige às instituições privadas.

“Assim, não vamos lá”, como sabiamente nos transmite o adágio popular e, em vez de Humanização, iremos ter, e cada vez mais, Mercantilização, pois os dois intemporais pilares em que se baseia o relacionamento entre pessoas e/ou instituições entre si, em qualquer ramo de atividade do Ser Humano, ou seja, o Respeito e a Confiança, como enfatizei na referida Conferência, têm vindo a ser irremediavelmente destruídos.